A série "Adolescência", da Netflix, tem provocado discussões importantes sobre a violência juvenil e os fatores que influenciam o comportamento de crianças e adolescentes. A trama acompanha a história de Jamie Miller, um jovem de 13 anos acusado de um assassinato, e expõe a complexidade do universo adolescente, marcado por desafios de desenvolvimento, influências externas e a busca por identidade.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Transtorno de Conduta – padrão de comportamento que viola regras sociais e os direitos dos outros – afeta cerca de 3,5% dos jovens entre 10 e 14 anos. Diante deste cenário e dos questionamentos levantados pela produção, a TV Cultura conversou com Barbara Arraes Guedes Macedo, neuropediatra especialista em Neurodesenvolvimento Infantil, que oferece sua visão sobre o tema.
Para ela, transtornos psiquiátricos na infância são multifatoriais, sem apresentar uma causa única e envolvendo uma "junção de fatores ambientais a fatores genéticos", por isso ressalta a importância de se analisar o comportamento agressivo na infância, que pode ser motivado por dificuldades de comunicação ou no controle de impulsos, e adverte que nem toda criança agressiva desenvolverá psicopatia.
A entrevistada comenta a representação de Jamie no seriado e a possibilidade do público infantil cometer atos extremos sem sinais prévios: "Isso é a minoria da minoria, isso é a exceção da exceção". Contudo, aponta que, em retrospecto, é possível identificar indícios de dificuldades preexistentes, como dificuldade de controle de impulsos, baixa autoestima e isolamento, que podem tornar o jovem mais vulnerável a influências externas.
A influência das redes sociais e a "maturidade" do cérebro
Um ponto crucial abordado pela especialista é a influência do conteúdo das redes sociais no cérebro em desenvolvimento de crianças e pré-adolescentes.
Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), que inclui características da psicopatia, só pode ser feito após os 18 anos, quando a personalidade está plenamente formada. Antes disso, comportamentos antissociais persistentes são diagnosticados como Transtorno de Conduta.
Barbara Arraes explica que o cérebro nessa faixa etária ainda está em desenvolvimento, principalmente o córtex pré-frontal, responsável pelo controle de impulsos, autorregulação e adequação do comportamento ao ambiente. A exposição a conteúdos violentos ou discursos de ódio pode ter um impacto significativo nesse cérebro imaturo, que "não tem maturidade para lidar com esse tipo de informação".
O que faz com que ela alerte para o risco do isolamento e da falta de orientação, que podem levar os jovens a buscar games, pornografia ou grupos com conteúdos nocivos, além de fazer um paralelo com a preocupação dos pais com a segurança dos filhos fora de casa: "Não adianta nada você privar essa criança de estar lá fora. Porque todos os riscos que estão lá fora estão ali dentro da telinha, e muito maiores", destaca.
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Afeto, influências e sinais de alerta
A entrevistada também discute a importância do afeto e da presença dos responsáveis no desenvolvimento social da criança, que aprende muito pela "imitação de comportamentos". Ela enfatiza a necessidade de "estruturas fortes, raízes fortes e valores pré-determinados", além de um diálogo aberto para que ela se sinta à vontade para compartilhar experiências e questionamentos.
No entanto, adverte que nem sempre a ausência de afeto é o único fator determinante para o desenvolvimento de transtornos mentais, e cita uma fala dos pais no drama que a impactou: "Ele é um bom menino, não é? Então, se ele é um bom menino, nós somos bons pais". Ela explica que essa "associação" não é direta, pois o jovem está sujeito a diversas influências externas.
Ao abordar os transtornos ou condições psiquiátricas associadas à violência infantil, a neuropediatra esclarece que o objetivo da série não é fornecer um diagnóstico para o personagem, mas sim "esmiuçar tudo aquilo que um adolescente está suscetível". Ela menciona que, em casos como o de Jamie, é possível observar "pródromos", ou seja, sinais e indícios que podem preceder o desenvolvimento de distúrbios, como transtornos de humor bipolar e transtornos de personalidade.
"Adolescência": alerta ou estigma?
A médica avalia o papel de produções como "Adolescência" no debate sobre saúde mental e violência juvenil. Ela acredita que, no caso específico dessa série, a abordagem é bem feita, pois "não se limita a, simplesmente, retratar uma violência", já que explora diversos contextos, como a dinâmica familiar, o ambiente escolar e as questões de masculinidade, oferecendo uma visão mais ampla e complexa do problema.
No entanto, expõe que outras produções podem reforçar estigmas e banalizar a violência, e recomenda que os pais assistam a essas obras junto com os filhos, para que possam discutir os temas abordados.
Masculinidade e a busca por aceitação
Os episódios também levantam questões sobre a masculinidade e seu impacto no desenvolvimento emocional dos meninos. A profissional, por sua vez, analisa como o protagonista enxerga o que é "ser homem" e identifica uma "visão deturpada" relacionada à violência e ao desrespeito à mulher. Ela observa que a baixa autoestima e a necessidade de reafirmação são temas centrais na trama, refletindo a busca do adolescente por aceitação e pertencimento.
A importância da intervenção precoce e da limitação de telas
A entrevistada ainda enfatiza a importância da intervenção precoce diante de sinais de alerta no comportamento infantil e adolescente. Ela destaca a necessidade de limitar o uso de telas, controlar o conteúdo acessado e evitar o isolamento, com o objetivo de proteger o cérebro ainda em formação e promover um desenvolvimento saudável. A recomendação é de que o acesso à tecnologia seja supervisionado e compartilhado, e que os adultos estejam atentos às recomendações da Sociedade de Pediatria em relação à idade adequada para o uso de smartphones e mídias sociais.
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