A recente e aclamada série “The Last of Us” trouxe à tona o risco de infecções fúngicas, apresentando na trama fungos capazes de invadir o metabolismo humano e controlar mentes. Mas, fora da ficção, uma ameaça como essa seria cientificamente possível?
Para responder a essa questão, a TV Cultura conversou com o Anderson Messias Rodrigues, chefe do Laboratório de Patógenos Fúngicos Emergentes da EPM-UNIFESP. O especialista avalia que o cenário retratado na produção é “extremamente improvável”, embora importante para despertar o debate sobre os riscos reais representados pelos fungos.
De acordo com um artigo publicado recentemente na revista científica The Lancet Infectious Diseases, as doenças fúngicas causam cerca de 3,75 milhões de mortes por ano em todo o mundo. Embora esses números não indiquem um apocalipse iminente, revelam um problema crescente de saúde pública.
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Barreira evolutiva
Na série, um fungo mutante infecta humanos e passa a controlar seus corpos. Do ponto de vista da micologia, porém, essa transição do ambiente natural para o corpo humano seria uma façanha quase impossível. “Primeiramente, o fungo precisaria reconhecer células humanas, resistir à nossa temperatura corporal e superar o sistema imunológico”, explica o micologista.

Reprodução/IMDb
Segundo o professor, a capacidade de controlar funções motoras, como mostrado na série, exigiria ainda que o fungo cruzasse a barreira hematoencefálica e manipulasse o sistema nervoso humano, um “obstáculo evolutivo gigantesco”.
Além disso, um Cordyceps ou outro fungo adaptado a artrópodes teria que desenvolver uma sucessão de mecanismos para sobreviver no corpo de um mamífero. “Cada etapa exigiria mutações muito específicas e coordenadas. Isso não ocorre de forma espontânea ou rápida, mas ao longo de milhões de anos, se é que acontece”, afirma Rodrigues.
Fungos letais e reais
Mesmo que o mundo esteja longe de um surto como o de “The Last of Us”, os fungos representam um risco concreto. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já reconhece a ameaça e classifica certos patógenos como prioritários. Entre eles, estão o Cryptococcus neoformans, causador da meningite, e o Candida auris, um patógeno emergente conhecido por sua resistência a múltiplos antifúngicos e associação a surtos hospitalares.
No Brasil, um fungo em especial chama atenção: o Sporothrix brasiliensis. Ele causa a esporotricose zoonótica, doença que afeta a pele e pode se espalhar pelo corpo. É transmitida, geralmente, por arranhões ou mordidas de gatos infectados, e tem se espalhado rapidamente, com casos graves e potencialmente fatais em pessoas imunossuprimidas.
Pandemia fúngica
Apesar das preocupações crescentes com fungos patogênicos, o especialista considera improvável que eles provoquem uma pandemia com a mesma velocidade e impacto de uma crise viral como a da Covid-19. Isso se deve às diferenças fundamentais nos mecanismos de propagação. Enquanto vírus respiratórios são altamente transmissíveis entre pessoas, a maioria das infecções fúngicas graves é adquirida do ambiente ou afeta indivíduos com imunidade comprometida.
Para causar uma pandemia em larga escala, um fungo precisaria superar o chamado “gargalo da transmissão” — adquirindo a capacidade de se espalhar com rapidez entre humanos, preferencialmente por via respiratória, ter um período de incubação curto, infectar uma parcela significativa da população e apresentar alta letalidade. Até o momento, nenhum fungo patogênico reúne todas essas características.
Impacto climático
Na trama da série, as mudanças climáticas são apontadas como um dos fatores que permitiram a mutação do fungo. O especialista explica que a temperatura corporal dos mamíferos atua como uma "zona de restrição térmica" para muitos fungos. Contudo, o aumento das temperaturas globais pode selecionar linhagens de fungos mais tolerantes ao calor, diminuindo essa barreira natural.

Reprodução/IMDb
O surgimento da Candida auris, mais tolerante a altas temperaturas, é um exemplo citado nesse contexto. Além disso, estudos indicam que as mudanças climáticas podem influenciar a dinâmica de doenças fúngicas em outras espécies, como a síndrome do nariz branco em morcegos e infecções em ninhos de tartarugas e anfíbios.
“É um alerta importante. A emergência de novos patógenos pode ser influenciada pelas mudanças ambientais que estamos vivendo”, destaca o professor.
Ainda que o mundo não esteja à beira de um apocalipse fúngico, os riscos não devem ser ignorados. Fungos letais existem, causam milhões de mortes e, com o cenário climático atual, o surgimento de cepas mais perigosas não pode ser descartado. A ficção pode ser exagerada, mas serve como um lembrete de que a realidade, em alguns casos, também pode ser alarmante.
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