Se for eleita presidente da França no próximo domingo, Marine Le Pen, candidata da direita radical que disputa o segundo turno contra o presidente Emmanuel Macron, promete dar uma guinada na política externa do país.
Apesar de Le Pen ter abandonado oficialmente a promessa de saída da França da União Europeia (Frexit) e da zona do euro, que integrava seu programa na eleição presidencial de 2017, ela propõe medidas que violam regras e acordos do bloco europeu e que podem provocar uma séria crise no continente. A tal ponto que seus projetos na área internacional estão sendo chamados de "Frexit light" por críticos.
Uma eventual vitória de Le Pen no domingo, embora as pesquisas apontem vantagem para o presidente Macron, também teria impacto direto em países fora da Europa, como o Brasil, já que a candidata do Rassemblement National (ex-Frente Nacional) quer retirar a agricultura de todos os acordos de livre comércio e proibir a importação de produtos agrícolas que poderiam ser cultivados na França.
O acordo Mercosul-União Europeia, firmado em 2019, está travado e não seguiu os trâmites de ratificação na Europa por conta da forte oposição em vários países, como a França, à política ambiental do governo brasileiro.
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O programa da direita radical de Le Pen prevê restabelecer o controle de pessoas e mercadorias nas fronteiras da França. O país integra desde 1993 o espaço Schengen (que reúne 26 países), dentro do qual as pessoas podem circular livremente. No caso de um cidadão não europeu que entra na zona Schengen, seu passaporte deve ser apresentado apenas no país de entrada e depois ele pode viajar pelos demais países desse espaço sem novos controles de identidade.
Le Pen quer renegociar o acordo de Schengen para "substituir a ausência total de controle nas fronteiras por um sistema simplificado para os cidadãos europeus". A candidata do Rassemblement Nacional (ex-Frente Nacional) afirma que isso visa combater a imigração.
A candidata quer também acabar com a livre circulação de mercadorias que existe desde 1993, um dos pilares do bloco europeu. No caso de produtos não europeus, há um controle no país de entrada para verificar a conformidade às normas europeias e depois ele pode ser transportado a outros países sem novas inspeções.
O programa de Le Pen afirma que "apenas os controles na fronteira podem assegurar a conformidade das mercadorias destinadas ao mercado francês."
Ela tem declarado durante a campanha que quer barrar a entrada de produtos, também agrícolas, que já são produzidos na França ou que não respeitam as normas de segurança e sanitárias do país. "A França não deve sofrer a concorrência desleal de produtos que não respeitam essas regras, importados pela União Europeia", afirma.
Mas a tarefa de Le Pen para restabelecer esses controles nas fronteiras não será fácil. Para renegociar as regras de livre circulação de pessoas e de mercadorias, é necessário um acordo por unanimidade dos demais 26 países da União Europeia, o que seria bem pouco provável. Ou então ela tomaria uma decisão unilateral e exporia a França a duras sanções impostas pelo bloco, além de uma marginalização política.
'Aliança de Nações'
Apesar de Le Pen não mencionar mais a saída da França da União Europeia, já que isso havia comprometido seu desempenho na eleição de 2017, ela afirma querer "reformar o bloco europeu por dentro".
Ela afirma que pretende trabalhar para a criação de uma "Aliança Europeia de Nações que têm vocação para se substituir progressivamente à União Europeia." É uma nova fórmula ao seu discurso já antigo, na disputa presidencial de 2012, "de lançar as bases de uma Europa respeitosa das soberanias populares e das identidades nacionais."
"Essa Europa de nações livres e soberanas será a Europa de cooperações e vai pôr fim ao projeto dos que querem tornar a União Europeia um super Estado federalista carregado de ideologia", diz seu programa.
Le Pen também quer também tornar facultativa a aplicação de regras europeias. Na prática, quando uma regra do bloco não corresponder aos interesses da França, haveria a prevalência do direito francês sobre as normas do bloco, o que desrespeita os tratados da União Europeia. A Hungria e a Polônia, que se tornaram párias no continente, já vêm agindo dessa forma.
A candidata quer inserir na Constituição francesa a superioridade do direito francês sobre o direito europeu "para permitir que a França concilie seu engajamento europeu com a preservação de sua soberania e a defesa de seus interesses."
O projeto de Le Pen de revisão constitucional por referendo popular (para escapar da votação parlamentar, seu partido não tem nenhum senador) é provavelmente inviável, na avaliação de vários juristas, já que a lei francesa não inclui a possibilidade de referendo direto para mudar a Constituição.
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"São os governos dos 27 países (da União Europeia) que elaboram as diretivas e os regulamentos. O direito europeu não pode ser oposto ao direito nacional. Inscrever na Constituição a superioridade do direito francês seria um Frexit soft", afirma o constitucionalista Dominique Rousseau em uma entrevista ao Le Monde.
Nesta reta final da campanha, o presidente Macron vem atacando o projeto de Le Pen em relação à Europa, afirmando que a candidata da direita radical continua querendo que a França saia da União Europeia, mas "sem dizer isso."
Vários termos surgiram na imprensa francesa nos últimos dias, como "Frexit light", "escondido" ou "disfarçado." Para Christine Verger, vice-presidente do Instituto Jacques Delors, "mesmo que a expressão seja mais policiada, o programa de Le Pen é profundamente soberanista, o que pode levar a uma forma de Frexit, sem dizer isso."
Uma outra medida que Le Pen, se eleita, pretende inserir na Constituição é a "preferência nacional" para a concessão de benefícios e moradias sociais e ainda o acesso ao mercado de trabalho às pessoas com nacionalidade francesa, medidas hoje inconstitucionais e contrárias também ao direito europeu.
A prioridade nacional também seria utilizada nas licitações "para reforçar o patriotismo econômico". Em alguns casos, poderia haver a prioridade europeia.
Rússia
Ela também quer retirar a França do comando integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). É o comando militar da aliança transatlântica, que fixa e aplica as estratégias em campo. A líder da direita radical afirma que não quer mais ver a França "arrastada em conflitos que não são nossos."
"Sair do comando integrado da Otan significaria uma desconfiança considerável do resto do mundo em relação à França e uma perda da influência da França no exterior", avalia Michel Duclos, consultor do Instituto Montaigne.
Le Pen, que foi recebida pelo presidente russo, Vladmir Putin, durante a campanha presidencial francesa de 2017, é regularmente acusada por seus adversários de ter proximidade com o poder russo. Seu partido tem dívidas com um banco da Rússia, renegociadas em 2020.
Ela criticou rapidamente a invasão da Ucrânia pela Rússia, mas não apoia as sanções contra o país, que segundo ela penalizam os consumidores europeus. Há temores de que se ela for eleita, possa tirar o apoio da França às sanções impostas pela União Europeia à Rússia, o que poderia levar ao fim dessas medidas de retaliação.
Le Pen defende uma "aproximação estratégica" entre a Rússia e a Otan após o fim da guerra na Ucrânia para evitar "uma estreita união sino-russa."
ONU
A candidata é favorável à ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Em uma coletiva sobre sua política externa na semana passada, Le Pen disse que apoiaria a Índia e "um grande país africano", citando o Senegal. O Brasil sequer foi mencionado.
Ao mesmo tempo, Le Pen disse que não apoiaria a Alemanha, país que junto com a França é considerado a "locomotiva" da União Europeia.
A França, desde a época do presidente Jacques Chirac, defendia uma vaga de membro permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU. O apoio cessou de ser declarado após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, que provocou um afastamento nas relações entre os dois países, iniciado após uma zombaria de Bolsonaro sobre a aparência da primeira-dama francesa, Brigitte Macron.
Le Pen felicitou Bolsonaro no momento de sua eleição, mas também disse, na época, que seus comentários sobre homossexuais e mulheres "são eminentemente desagradáveis", e que não poderiam ser "transferidos à França" e evocou também "uma cultura diferente.".
Para restaurar a diplomacia francesa "nacional", Le Pen visa deixar de lado o multilateralismo, seja ele europeu ou da ONU, que segundo ela enfraquece os interesses da França, e prefere privilegiar as relações bilaterais internacionais.
A líder do Rassemblement National também afirmou que a questão climática não faz parte das prioridades de sua eventual política externa. Ela prometeu, pelo menos, que a França não sairia do acordo de Paris.
Segundo as últimas pesquisas, Macron vem ampliando sua diferença em relação à candidata da direita radical, que chegou a ser de apenas dois pontos logo após os resultados do primeiro turno. O presidente tem agora entre 53% e 56% das intenções de votos e, Le Pen, 44% a 47%.
Apesar da progressão nas últimas pesquisas, a diferença, que chega agora a ser de 12 pontos percentuais, é bem menor do que na eleição de 2017, quando Macron venceu com 32 pontos de diferença.
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