Fundação Padre Anchieta

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Pouco antes de o isolamento social começar, fui jantar com um casal de amigos. Ela, jornalista como eu, contou sobre um ex-colega nosso e de como ele a assediava. O comportamento dele, em pleno ambiente de trabalho, era claramente estúpido, violento (não fisicamente) e horroroso. Era abusivo.

“Eu não percebia o que era”, ela contou. “Nem eu, nem as outras colegas que também sofreram com ele. Isso foi há mais de dez anos. Não se falava sobre assédio. Não sabíamos que podíamos dar esse nome para esse comportamento. Havia apenas o mal-estar, um sentimento péssimo que começava quando ele se aproximava e aumentava depois que ia embora.”

Pensei muito no que ela falou. O comentário acendeu uma luz em mim. É mais difícil lidar com o que não sabemos o que é. Quando há um manto encobrindo o problema, tudo fica complicado: o que é isso que estamos enfrentando? Qual o tamanho dele? O que posso fazer para resolvê-lo? Se não sou a vítima, como posso ajudar?

Volto à resposta dela: “Não se falava sobre assédio. Não sabíamos que podíamos dar esse nome para esse comportamento”. Hoje, falamos. Pouco, na minha opinião. E a conversa dela me lembrou uma graphic novel que me marcou, e que li pouco tempo depois de ter convivido com o assediador e essa amiga: "Mas Ele Diz que me Ama", de Rosalind B. Penfold.

Antes de comentar sobre o quadrinho, vamos falar sobre nomes. O título completo em português é “Mas Ele Diz que me Ama – A Graphic Novel de uma Relação Violenta”. E Rosalind B. Penfold não é o nome da autora, mas um pseudônimo. Ao abordar um tema tão difícil, ela quis se preservar. Ao mesmo tempo, optou por criar um codinome para que toda mulher que tenha sido vítima de abuso pudesse usar para expor o que sofreu sem precisar revelar a sua identidade.

O livro pode ser resumido assim: uma mulher inteligente, simpática e bem-sucedida se apaixona por um homem e eles se casam. Ela não percebe, mas há um ciclo repetitivo. Em certos dias, ele a chama de linda, maravilhosa, carinhosa, uma deusa, a bênção que Papai do Céu mandou... Nos outros, ela é desleixada, nojenta, pegajosa, uma merda, maldita a hora em que se apaixonou por ela.

É uma montanha-russa emocional. Se você olhar ao seu redor, vai ver que isso é frequente. Pode nunca ter acontecido contigo, mas preste atenção. Você já viu um relacionamento amoroso assim? Ou um entre chefe e funcionário? Mesmo entre amigos?

Essa rotina é massacrante. Destrói a autoestima. Os dias “ruins” fazem com que a vítima se sinta o pior tipo de ser humano que existe, a mosca que sobrevoa o cocô do cavalo do bandido. Os dias “bons” fazem com que ela agradeça aos Céus por ter alguém como ele, o abusador, por perto: afinal, se você é um lixo, que bom que alguém nota a tua existência! Mais do que isso: esse alguém te ama!

Repare que coloquei aspas em “ruins” e “bons”. Afinal, todo dia em um relacionamento abusivo é simplesmente péssimo. Ou pior do que isso.

O cotidiano humilhante e devastador não é tudo. A pessoa que pratica o abuso se sente cada vez mais à vontade para dar um passinho além. Li o livro há mais de dez anos, e algumas cenas me marcaram. Vou citar uma: a Rosalind não poderia ser mãe. Caso engravidasse, teria de abortar pois morreria na gravidez. O marido, machão, se recusa a usar preservativos. Ela aceita. E engravida. CLARO.

Ao saber que Rosalind tem de abortar, o marido manda que ela resolva sozinha aquele problema que “arranjou para si mesma”. A mulher aceita. Volta da clínica de aborto emocionalmente devastada e pede um abraço. Em vez disso, o energúmeno exige receber sexo oral. Ela aceita. E ele se levanta e vai embora. Sem o abraço. CLARO.

Eu me senti um monstro só de escrever os dois parágrafos acima. Mas imagine se minha amiga e suas colegas tivessem lido a graphic novel antes de trabalhar com o cidadão que as assediou. Provavelmente teriam percebido o que estava acontecendo. Talvez dessem um nome: assédio. Porventura até o enfrentassem, denunciando-o a quem de direito.

Rosalind sabe que nada disso é fácil: entender o que está acontecendo, preservar-se, reagir. Tanto que ela criou um site, infelizmente em inglês: Dragonslippers (nome original do livro). Lá, ela desenha 12 sinais de abuso: preste atenção se um deles está acontecendo contigo ou com alguém ao seu redor. Além disso, disponibiliza URLs de vários sites, em diversos idiomas, sobre violência doméstica.

“Mas Ele Diz que me Ama” esfregou na minha cara o que era relação abusiva. Página após página, exemplo após exemplo, elogios celestiais após comportamentos demoníacos.

Ao ver que esta era uma coluna sobre quadrinhos, talvez você esperasse um texto mais leve. Não se preocupe, teremos textos mais leves no futuro. O universo dos quadrinhos é gigantesco e temos, felizmente, muito assunto para conversar por aqui. :-)

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. Nascido e criado em São Paulo, é filho de um físico luso-angolano e de uma jornalista paulistana.

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