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Em fazenda no sul do Pará, Volkswagen se aventurou no ramo da criação de gadoEm entrevista à DW Brasil, autor das denúncias de trabalho escravo que levaram à investigação da montadora alemã no Brasil fala sobre expectativa de responsabilização da empresa por violações cometidas há 40 anos.O passado da montadora alemã Volkswagen no Brasil voltou a ser notícia depois de o Ministério Público do Trabalho em Brasília ter convocado a empresa para uma audiência, que ocorre nesta quarta-feira (14/06). A convocação veio devido a uma investigação promovida pelo órgão que confirmou o emprego de trabalho escravo numa fazenda que a Volks possuiu no sul do Pará, entre as décadas de 1970 e 1980.

A apuração do caso partiu de um dossiê produzido pelo padre Ricardo Rezende Figueira, que na época era trabalhava para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e atualmente coordena um grupo de pesquisa sobre o trabalho escravo contemporâneo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

As acusações que recaem sobre a Fazenda Vale do Rio Cristalino, da Volkswagen, vão desde trabalho escravo até homicídio, estupro, violência física e tortura. Em entrevista à DW Brasil, Figueira disse ter certeza de que "a direção da Volkswagen tinha conhecimento " do que se passava no local.

Aos 70 anos de idade, Figueira diz esperar que a Volkswagen, depois de quatro décadas, "reconheça esses crimes", e "indenize os trabalhadores individualmente". Em entrevista à DW Brasil, ele contou detalhes sobre as violações cometidas no local.

DW Brasil: Você foi o responsável pelo dossiê que levou o Ministério Público do Trabalho (MPT) a convocar a Volkswagen do Brasil para esclarecer denúncias de trabalho escravo envolvendo a empresa durante a ditadura militar no Brasil, nos anos 70 e 80. Por que a justiça decidiu finalmente investigar essas denúncias agora, depois de tanto tempo?

Ricardo Rezende de Figueira: Essas denúncias se deram no período militar, e esse período foi longo. Era muito difícil convencer as autoridades brasileiras a agir. Faltavam as condições sociais e políticas. Agora, o contexto é diferente, é favorável a essa ação. Temos um novo poder Judiciário, uma nova leva de procuradores. Tivemos também publicações novas, como o livro do historiador Antoine Acker, sobre a fazenda da Volkswagen na Amazônia, e um livro nosso. E tivemos, principalmente, o fato de a Volkswagen ter resolvido reparar recentemente o que aconteceu na sua montadora em São Bernardo do Campo.

Então, em 2019, nós repassamos um dossiê com mais de 600 páginas ao procurador Rafael Garcia, do Ministério Público do Trabalho. Depois de novas investigações, depois de ouvir quem tinha sobrevivido ao trabalho escravo e tinha prestado depoimento nos anos 80, o Ministério Público do Trabalho intimou à Volkswagen para conversar e tentar uma solução, talvez amigável.

Que tipo de desdobramentos você espera para esse caso?

Espero que a Volkswagen reconheça que o que houve foi gravíssimo. Porque foram violações de direitos humanos fundamentais. E que agora, em 2022, a empresa faça o que fez nos anos 80 aí na Alemanha, em relação ao passado, quando admitiu que, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, também utilizou mão-de-obra escrava no seu próprio país.

Espero que a Volkswagen reconheça que esses crimes não deveriam ter ocorrido, indenize individualmente as vítimas, e revele os nomes de todos que estiveram dentro da fazenda trabalhando em situação análoga a de escravo, porque temos conhecimento de apenas uma parte dos casos.

Quanto a indenização, minha expectativa é que, além de individual, a empresa aceite pagar também por dano moral coletivo. O crime é contra indivíduos e é contra o país.

Que tipo de violações estão listadas ao longo desse dossiê?

Em primeiro lugar, as violações em torno do que chamamos de escravidão por dívida. Os trabalhadores entravam na fazenda e não podiam sair mais, sob o pretexto de que tinham uma dívida devido ao transporte até a Fazenda Vale do Rio Cristalino. Depois, havia dívidas de alimentação, pois eram obrigados a comprar comida dentro da fazenda, de instrumentos de trabalho e do plástico usado para cobrir o barracão improvisado. Era um sistema de endividamento permanente.

Eram milhares de trabalhadores em regime de escravidão, recrutados sobretudo no Nordeste e Centro-Oeste, para as atividades temporárias, como derrubar a floresta, lançar fogo na mata, plantar capim e construir as instalações da fazenda. As condições de vida e de trabalho eram degradantes, além de ser um trabalho exaustivo.

Além disso, havia também informações sobre homicídio, estupro, violência física, tortura. Eram denúncias terríveis. E como era uma propriedade privada de 139 mil hectares, não tínhamos o direito de entrar lá.

Até que ponto a direção da Volkswagen no Brasil não teria conhecimento do que se passava na fazenda?

Tenho certeza de que a direção da Volkswagen tinha conhecimento. Se não tinha, o que eu acho impossível, passou a ter quando esteve dentro da fazenda conosco, em 1983, porque havia evidências enormes do crime acontecendo. Havia cumplicidade com os crimes. Se não havia problema, por que esconderam de nós os trabalhadores? Por que esconderam os locais onde eles estavam trabalhando? Não queriam nos mostrar as condições de trabalho, de água e sanitárias oferecidas. Eles tratavam os trabalhadores de forma incomparavelmente pior do que tratavam o gado. Para o gado, havia boa alimentação, bons pastos, veterinário, pesquisa científica. Para os trabalhadores, não havia nada.

A direção brasileira e a alemã da VW sabiam dos crimes. Em 1983, a Iniciativa Brasileira, de Freiburg, e a Anistia Internacional, trocaram correspondências com a direção da empresa na Alemanha informando sobre as denúncias e a imprensa alemã também publicou matérias.

E o que levou a direção da empresa a organizar essa visita, em 1983?

Em 1983, depois de ter acesso a três trabalhadores que tinham escapado da fazenda, dei uma coletiva de imprensa em Brasília. O jornal O Globo foi o único que deu a notícia, meio escondida. A Volkswagen continuava contando com o silêncio da imprensa brasileira. Mas a notícia chegou à Alemanha. A direção internacional foi questionada, e negou os crimes. Um deputado estadual de São Paulo denunciou o caso na Assembleia Legislativa, e a Volkswagen quis convidá-lo para entrar na fazenda e verificar que as minhas denúncias não procediam. Assim, eles organizaram uma visita com três deputados estaduais, e um jornalista e um fotógrafo do Estadão.

E você não foi convidado?

Não fui convidado. Mas ao entrar na fazenda, eles explicaram que só conversariam com a minha presença. A Volks se surpreendeu, mas colocou um carro à disposição para me buscar. Na saída da fazenda, quando iam ao meu encontro, eles encontraram um dos ‘gatos' [os responsáveis por aliciar a mão-de-obra temporária], que afirmou que iria provar que eu estava mentindo. Ele, então, levou os parlamentares até à carroceria de um veículo e mostrou um homem amarrado, e disse: "Olha, ele estava fugindo, ia me dar prejuízo. E ele tem que voltar ao trabalho”.

Esse ‘gato' estava cometendo o crime de sequestro, de trabalho escravo, violando os direitos mais básicos, e não tinha noção disso.

Vocês tiveram acesso aos trabalhadores da fazenda?

Nós não tivemos acesso. Mas um deles apareceu, inesperadamente, me segurou pelo braço e pediu ajuda. Chamei os deputados e a direção da empresa para todos ouvirem o trabalhador, que contou que estava com malária e febre e estava sendo impedido de deixar a fazenda por possuir supostas dívidas.

O diretor da fazenda, Friedrich Georg Brügger, ficou irritado, e alegou que todos trabalhavam assim na região. Ele estava admitindo que estavam cometendo aquele crime. Depois, talvez num gesto de reconciliação, pois ele tinha sido grosseiro comigo, Brügger me deu de presente um cálice e uma patena de pau-brasil. Não sei dizer se a VW estava derrubando pau-brasil. Mas ele tinha um cálice de pau-brasil, e pau-brasil é uma madeira protegida por lei brasileira. A sede da fazenda da Volkswagen era como uma cidade moderna e com ótima estrutura sanitária, iluminação, piscina, hotel, casas de alvenaria – construída, em grande parte, com dinheiro público, com os incentivos fiscais do governo.

Havia denúncias envolvendo também funcionários contratados pela Volkswagen para o trabalho na fazenda?

Quando comecei a organizar o dossiê, em 1977, logo que cheguei ao sul do Pará, já havia informações sobre a Volkswagen. Havia denúncias de problemas envolvendo funcionários com carteira assinada. Alguns trabalhavam 12h diárias, e eram demitidos sem aviso prévio. Houve acidentes de trabalho sem atendimento adequado. Quem reclamasse de direitos trabalhistas era ameaçado por pistoleiros. Tive acesso a um dossiê da Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura que denunciava tratamentos inaceitáveis dados também a funcionários da empresa, inclusive com ameaças de homens armados.

Você vê algum paralelo entre o modelo de ocupação adotado pelos militares em relação à Amazônia, e a forma como o governo de Jair Bolsonaro lida com a região, por exemplo, em relação ao desrespeito aos direitos indígenas?

Se dependesse do governo do presidente Bolsonaro nós estaríamos numa situação ainda pior do que na ditadura. A sorte é que ainda temos um poder judiciário, e alguns membros do Ministério Público, que ainda colocam limites na ação do presidente. Temos um presidente que não tem empatia pelos trabalhadores, mas tem muita empatia por aqueles que cometem os crimes. Por exemplo, de garimpo. Estão jogando mercúrio nos rios, e comercializando indevidamente minerais, como o ouro, e tirando madeira de áreas indígenas. E isso viola a legislação brasileira. E o Bolsonaro fecha os olhos.

Ele não tem empatia nem para com as mulheres, nem com os indígenas, nem com a população afrodescendente, nem com ambientalistas ou defensores de direitos humanos. Isso é extremamente grave. É um discurso moralista, que lembra a extrema direita, que criou tantos problemas no mundo em outras ocasiões. O fascismo e o nazismo seriam certamente abraçados pelo Bolsonaro sem nenhum problema.