Antes dos protestos que derrubaram o presidente Hosni Mubarak em 2011, o então ministro do Turismo e Antiguidades, Zahi Hawass, iniciou uma campanha para repatriar a obra de arte. Agora, em setembro de 2024, ele lançou uma petição exigindo que a Alemanha "devolva" a obra "notável e sem igual na história, por seu mérito histórico e estético".
"Embaixadora" ou refém?
Descoberta por uma equipe arqueológica alemã em 1912 e transportada para a Europa no ano seguinte, a escultura de calcário pintado, provavelmente realizada por volta de 1345 a.C., tornou-se uma importante atração turística da capital e parte de seu consciente coletivo.
Atualmente exposta no Neues Museum, ela já foi denominada "embaixadora do Egito" em Berlim. Porém a arqueóloga egípcia Monica Hanna questiona essa narrativa.
"Um embaixador implica intercâmbio diplomático", porém será que o Egito recebeu algo importante em troca da Nefertiti, como "a coroa de Frederico, o Grande, ou uma pintura de Albrecht Dürer"? "Não acho que recebemos. Se você envia um embaixador em mão única, ele é um refém."
Hanna tem reivindicado publicamente uma "descolonização da arqueologia egípcia". E argumenta que a iniciativa de repatriação do busto real desperta resistência porque "se tornaria um precedente, preparando a estrada para o retorno de muitos objetos levados embora sob o colonialismo".
Para além da Nefertiti
Em sua petição, Hawass igualmente exige a devolução de dois outros importantes patrimônios culturais da Antiguidade, mantidos na Inglaterra e na França, respectivamente.
Em exposição no Museu Britânico de Londres, a milenar Pedra de Roseta contém inscrições em três idiomas e escritas diversas, tendo constituído a chave para decifrar os hieróglifos egípcios. Por sua vez, o Zodíaco de Dendera é um diagrama em pedra de cerca de 2,5 metros de diâmetro, em baixo-relevo, mantido no Museu do Louvre, em Paris.
Em ocasiões anteriores, a Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (SPK), que supervisiona as coleções museológicas de Berlim, já reconheceu a presença, em suas coleções, de arte colonial saqueada, tal como os Bronzes de Benin, restituídos em parte à Nigéria, em 2022.
No que se refere ao busto da rainha, contudo, a fundação sustenta que ele foi adquirido legalmente do Egito, após sua descoberta nas ruínas de Amarna. Durante um breve período, essa cidade na margem leste do rio Nilo foi capital real, sob o marido de Nefertiti, faraó Aquenáton, sendo abandonada por volta de 1335 a.C., após a morte deste. À época da sua descoberta, o atual território do Egito estava na área de influência do antigo Império Otomano, mas na prática era administrado pelo Império Britânico.
"O busto de Nefertiti foi encontrado durante uma escavação autorizada pela Administração Egípcia de Antiguidade", afirma o porta-voz da SPK Stefan Müchler, em declaração por escrito. "Ele veio para Berlim com base em uma – na época costumeira – divisão dos achados, que incluiu muitos outros objetos." Assim, "o busto foi levado legalmente do país, e não há reivindicação de devolução por parte do governo egípcio".
Nefertiti "descaradamente roubada"?
Müchler se refere a um acordo com as autoridades do país árabe, detalhando uma divisão de 50-50 de cerca de 10 mil objetos encontrados, em troca de financiamento provido pelo magnata alemão do algodão e têxteis James Simon. Um representante do Cairo teria selecionado a metade dos artefatos, sendo a outra levada para a Alemanha, inclusive o busto, que vários anos mais tarde passou a ser exposto no Neues Museum.
Porém essa versão dos fatos não é aceita universalmente. As primeiras exigências de devolução – por parte do Egito e da França – datam já de 1924. Para o arqueólogo Hawass, Nefertiti foi "descaradamente roubada", pois o egiptólogo alemão Ludwig Borchard, chefe da escavação inicial, a teria levado do Egito sob falsos argumentos.
Em 1913 os alemães a teriam "escondido e contrabandeado para fora do país, apesar das leis declarando ilegal a retirada de achados arqueológicos excepcionais'", escreve o ex-ministro.
Do website Returning Heritage, que acompanha debates de restituição cultural, consta que "o Estado egípcio na época se reservava um veto sobre todos os objetos que considerava importantes demais para saírem do país". Segundo o redator-chefe Lewis McNaught, porém, é possível que Borchard tenha conseguido "minimizar a importância" do busto.
Um dado relevante é que a escultura foi exportada antes da descoberta do túmulo de Tutancâmon, em 1922. Esse evento arqueológico representou um divisor de águas, motivando o Egito a remover todos os direitos "dados a escavadores estrangeiros de levar para casa achados importantes", explica McNaught em seu relatório.
O especialista considera "altamente improvável" que Hawass tenha sucesso em sua campanha para repatriar Nefertiti, a menos que as autoridades do país "apresentem novas provas de que houve engano intencional". E comenta: "O modo como o espólio de tais escavações era dividido à época, está muitas vezes (se não sempre) envolvido em mistério."
REDES SOCIAIS