Ouça o programa completo:
Conta uma velha tradição que um caçador de nome Herne – outrora um antigo guarda da floresta de Windsor – retorna no inverno à mesma floresta por volta da meia noite...
O Caçador Herne, então, anda em torno de um carvalho, uma enorme árvore em meio a tantas outras que compõem a mata fechada. Herne está vestido na cabeça com grandes chifres de cervo, peito nu e calça de cetim justa ao corpo com rendas pendendo nas laterais das pernas. Os pés estão descalços. O silêncio da noite é ensurdecedor, só interrompido pelo canto soturno da coruja, e o coro abafado dos grilos ao longe. Ao primeiro sinal da neve, quando o primeiro floco desce do céu em piruetas imprecisas, lá aparece Herne para o seu itinerário em volta do carvalho, bem no centro da floresta de Windsor. Herne, então, devasta as árvores a sua volta, ataca o gado, faz com que a vaca leiteira dê sangue e sacode uma corrente do modo mais sinistro e terrível. Já ouviram falar a respeito desse espírito e vocês sabem muito bem que os velhos supersticiosos e crédulos receberam e transmitiram como verdadeira à nossa geração essa assombrosa história de Herne, o caçador. E ainda há muita gente que tem medo de passar durante a noite perto do carvalho de Herne, com medo de encontrá-lo por lá em seu itinerário destruidor.
Pois bem, aqui está a nossa ideia: Falstaff, o glutão namoradeiro, deverá encontrar-se conosco perto do carvalho e, aproveitando-nos da lenda do caçador Herne, lhe pregaremos uma peça para ensiná-lo a não se meter com a mulher dos outros. Faremos a história ser reencenada escapulindo do terreno fértil da imaginação para o palco concreto da realidade e, com um pouco de artificialismo e engenhosidades calculadas, o teatro que ergueremos servirá de armadilha à força de sugestão deste gordo pançudo, tomando por verídico o que nunca pôde ser provado, revivendo fantasmas em suas danças sinistras. E assim, com um baita susto, acreditamos que redimiremos os pecados de Falstaff com uma bela gargalhada.
Parece que Shakespeare escreveu As Alegres Comadres de Windsor em somente duas semanas a partir de uma encomenda feita pela própria Rainha Elizabeth que desejava ver o popular personagem Falstaff uma vez mais, dessa vez apaixonado e metido em outras tantas confusões – Falstaff, vamos lembrar, estivera presente na peça Henrique IV como o amigo inseparável do príncipe Hal, que mais tarde assumiria o trono da Inglaterra como Henrique V. Shakespeare, que não era bobo nem nada, vendo que a figura do pançudo e espirituoso Falstaff despertava interesse em todos – até da rainha – escreve uma peça – agora uma comédia - para satisfazer os ânimos da audiência, e colocar como protagonista uma personagem carregada de vícios nada louváveis. O riso na comédia serve justamente para purgar as atitudes que não se encaixam nos comportamentos adequados de um certo agrupamento social.
E este é um programa que tenta comprovar que Shakespeare é o grande decifrador da alma humana. Seja na Inglaterra elisabetana ou no Brasil de hoje, ele permanece sempre vivo, bastante próximo a cada um de nós.
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