O compositor ucraniano Nikolai Kapustin, morto aos 82 anos em 2 de julho de 2020, sofreu a vida inteira com dois preconceitos cruzados. De um lado, a tribo clássica torcia o nariz para suas sonatas, concertos e prelúdios sincopados, porque cheiravam a jazz. De outro, a tribo dos músicos de jazz e da seara instrumental popular também torcia o nariz porque esta música é totalmente escrita, não abre espaço para o improviso, elemento-chave neste reino.
Nem por isso Kapustin desviou-se de seu itinerário. Pagou o preço pela postura inabalável. É bem pouco conhecido no Ocidente. E, em seu país, também sofreu censura semelhante à de Shostakovich, Prokofiev e tantos outros compositores e músicos da era soviética. O jornalista inglês Norman Lebrecht contou que, quando trabalhou para a Orquestra de Moscou, seus dirigentes com frequência o estimulavam a compor peças que no último minuto tinham sua execução cancelada.
No Ocidente, sua música só começou a circular timidamente no início do século 21 por puro atrevimento de dois pianistas gravando para o mesmo selo, Hyperion: o canadense Marc-André Hamelin, especialista em repertórios tecnicamente dificílimos de compositores pouco conhecidos,; de outro o escocês Steven Osborne.
A música de câmara chegou ao CD na primeira década deste século, com o trio catalão Arbós.No mesmo ano, por aqui a Orquestra Jazz Sinfônica quebrou o jejum em 2014, incluindo duas obras de Kapustin: o “Concerto para Sax-Alto e Orquestra opus 50” e o “Concerto para Orquestra opus 30”.
Uma leitura apaixonante do concerto no. 2 para piano e orquestra, considerado uma das obras-primas de Kapustin, foi gravada em 2019 e lançada ano passado. O pianista russo Dmitry Masleev, medalha de ouro no Concurso Tchaikovsky de Moscou em 2015, também incluiu outras duas obras fascinantes no excelente álbum “Rapid Movement”, ao lado da Orquestra Sinfônica Estatal Siberiana regida por Vladimir Lande, lançado em abril de 2020 pela Melodyia russa.
Este é o encantador CD desta Semana na Cultura FM. Ao lado de Kapustin, Masleev também toca o suingado “Concerto no. 1 para piano, trompete e cordas em dó menor, opus 35”, de Shostakovich. E completa com mais uma autêntica raridade, a ‘Suíte para Piano e Orquestra” de outro pioneiro do jazz soviético, Alexander Tsfasman, que é a pura contrafação russa à Rhapsody in Blue de Gershwin. Tsfasman a compôs em 1945 – num raro momento em que russos e norte-americanos se irmanaram comemorando a vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial.
Mas o concerto de Kapustin é a estrela deste álbum recheado de música da mais alta qualidade. É puro jazz, e ao mesmo tempo inteiramente escrito. Sem improviso nenhum. “Jamais fui um músico de jazz”, disse numa entrevista. “Só a partir dos 16 anos estudei jazz. Eu seria mais um virtuose clássico lá pelos 20, 21 anos. Entendi então que o jazz era muito importante para mim. Apaixonei-me por ele desde que o ouvi pela primeira vez. Acalentei a ideia de combinar as duas músicas desde a adolescência.”
Kapustin uniu as duas pontas de sua formação, criando uma maneira muito original de compor sua música: ela respira o perfume do improviso, devido à sua larga experiência jazzística; e ao mesmo tempo é tributária direta da música erudita. Ou seja, é blues, bebop, swing, stride piano e boogie-woogie misturado com as linguagens musicais de nomes como Rachmaninov, Medtner e Scriabin. Só dá para imaginar o encanto desta música ouvindo-a.
A cada semana o crítico musical João Marcos Coelho apresenta aos ouvintes da Cultura FM as novidades e lançamentos nacionais e internacionais do universo da música erudita, jazz e música brasileira. CD da Semana vai ao ar de terça a sexta dentro da programação do Estação Cultura e Tarde Cultura.
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