Fundação Padre Anchieta

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Reprodução da Internet.
Reprodução da Internet. Keith Jarrett.

Ouça o álbum completo:


O pianista norte-americano Keith Jarrett -- que anunciou sua aposentadoria forçada por dois AVCs sofridos em 2018, mas somente revelados em outubro de 2021 – é um daqueles músicos de gênio que terá o conjunto de sua obra cada vez mais valorizado nas próximas décadas. O AVC teve sequelas trágicas. Ele levou um ano para conseguir andar com bengala em casa. E está até hoje com seu lado esquerdo – o que inclui sua mão – paralisado. Diz que tentou tamborilar algo no estilo de Bach com a mão direita, mas que não se considera mais “como um pianista”. Lamentou ainda perda parcial de memória.

De outro lado, reconforta saber que será cada vez mais visto, analisado e avaliado como músico-modelo de uma nova postura que terá se consolidado plenamente daqui a meio século: o de raro músico total do século 21. Jarrett foi ousado como Franz Liszt, celebridade mundana que também foi decisivo ao inventar o recital de piano solo, em meados do século 19, improvisando no calor da hora sobre temas sugeridos pela plateia e ainda ser um farol em direção à música do futuro. Como, aliás, atesta a pequena, mas explosiva “Bagatela sem Tonalidade”, escrita em 1885, um ano antes de sua morte e mais de duas décadas antes de Schoenberg. No último meio século, muitos torceram o nariz para suas exigências de silêncio absoluto da plateia nos recitais, proibição de fotos. E chamaram sua música de entediante. Será por que exige uma escuta ativa, tão ativa quanto a da música clássica contemporânea?

O CD desta semana, na Cultura FM, mostra o chamado lado “clássico”, ou “erudito” do pianista, interpretando no seu poderoso Bosendorfer de concerto sonatas compostas no século 18 por Carl Philipp Emanuel, o mais velho dos vinte filhos de Johann Sebastian Bach.

Aos que ainda insistem em desdenhar Jarrett quando toca música dita clássica, basta olhar para sua biografia para compreender que a música sempre foi para ele absoluta, sem adjetivos, rótulos ou gêneros. Valem alguns flashes. O menino nasceu em Allentown, na Pensilvânia, de mãe austro-húngara e pai húngaro emigrados, em 8 de maio de 1945, o festejadíssimo dia da vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Mãe pianista, pai violinista. Aos 18 meses, ele cantava “Night before Christmas” inteira, depois de ouvi-la no rádio. O ouvido absoluto e um piano de armário de segunda mão fizeram o resto. Teve as primeiras aulas de piano antes do terceiro aniversário. Aos 5, participou na TV do show de Paul Whiteman, o célebre maestro que estreara a “Rhapsody in Blue” de Gershwin em 1924.Naquela altura, já estudava a sério, e era esperto o suficiente para acrescentar notas num concerto de Mozart quando estava sozinho, mas tocá-la como estava escrito diante do professor. Deu seu primeiro recital aos 7 anos, com entrada paga: peças fáceis de Mozart, Bach, Beethoven (variações sobre ‘nel cor più non mi sento’), um noturno de Grieg, Schumann, Mendelssohn, Mussorgsky. Ao todo 14 peças nas primeiras três partes. Na última, duas composições dele mesmo: “Um passeio no zoo” e “Cena na montanha”.

Era o autêntico menino-prodígio, tal como o célebre Wolfgang Amadeus no século 18. A futura carreira clássica gloriosa desmanchou-se quando seus pais se separaram. Ele tinha 11 anos. E dali em diante mergulhou no jazz e nas músicas populares.

Durante toda a sua carreira, sempre gravando para a ECM, Jarrett alternou-se entre o recital puramente improvisado, sua marca registrada, com leituras muito boas do repertório clássico. Gravou muito Bach – o Cravo, as suítes francesas, as Goldberg --, mas também os prelúdios opus 87 de Shostakovich, música contemporânea de autores como Lou Harrison, parceiro de estrada nos primeiros anos de John Cage. Chegou a improvisar num órgão do século 19, na Alemanha.

Se de um lado lamento todo dia que ele não possa mais tocar piano, de outro fico de olhos e ouvidos bem abertos à espera de lançamentos de suas gravações, clássicas e jazzísticas, pela ECM. Desde os anos 1970, Manfred Eicher, o criador da ECM, gravou em condições técnicas excepcionais todas as vezes em que Jarrett tocou em público. Fora gravações de estúdio. Um imenso tesouro que agora conhecemos aos poucos.

Dito tudo isso – me perdoem a eloquência –você pode curtir quantas vezes quiser, durante esta semana, o recém-lançado álbum em que Jarrett toca as sonatas Wurttemberg, de Carl Philipp Emanuel Bach. Ele as compôs em 1742 e publicou-as dois anos depois. Dedicou-as ao Duque de Württemberg. A gravação aconteceu no estúdio Cavelight, em New Jersey, em 1994. Estas sonatas maravilhosas são a prova viva do que ele escreveu no “Tratado sobre a maneira correta de tocar teclado”, publicado em 1753. E quando falava em teclado, ele pensava modernissimamente no fortepiano, e não no cravo, como seu pai, daí sua importância esmagadora para pianistas até hoje. Como escreve Luca Chiantore, “ele já expõe praticamente a mecânica de um concertista moderno”.