Ouça o álbum completo:
O cantor e pianista norte-americano Andy Bey morreu no último dia 27 de abril, aos 85 anos. É uma de minhas paixões maiores no mundo musical desde que o conheci através de um álbum intitulado “Pages of an imaginary life”, páginas de uma vida imaginária, em que ele canta e se acompanha ao piano. Ele estava com 74 anos, corria o ano de 2014.
O impacto de sua voz personalíssima e um piano emocionante marcaram – pela leitura dos obituários publicados por jornalistas e críticos norte-americanos – muita gente no planeta. Infelizmente, porém, ele era uma estrela solitária, gema escondida a cujos tesouros musicais poucos tiveram chance de vivenciar por meio de sua arte. Nate Chinen, que foi crítico de jazz do New York Times por anos, começa o obituário dizendo que “ele era o tipo de cantor que fazia você chorar. Mais impressionante ainda, ele conseguia fazer você sentir que chorar era a resposta a um chamado — a resposta natural a uma onda de sentimentos em sua sutileza. Hoje, fiz o meu melhor, mesmo em condições desfavoráveis, para homenageá-lo com este obituário. Gostaria de expandir minha homenagem aqui e espero que não se importem se ela se tornar um pouco pessoal”.
Pois meu modesto tributo a Andy Bey, também muito pessoal, é fazer destas impressionantes “páginas de uma vida imaginária” o CD desta semana na Cultura FM.
Bey é muito mais que um cantor que se acompanha ao piano nem precisa ser qualificado como um barítono dotado de uma rara tessitura de quatro oitavas. Ele usa esta amplitude como um alquimista, tamanha a sutileza e refinamento. Ao mesmo tempo, transformou-se na rara espécie dos que se jogam inteiros numa canção, fazendo da performance um ato essencial, como uma Billie Holiday. Ao todo, quinze gemas do songbook norte-americano são deglutidas e reinventadas. Um milagre que ele multiplicou por quinze canções.
Os acordes iniciais da primeira faixa, o standard “My foolish heart”, já impactam. Mas, poucos compassos depois, ele degusta cada palavra, cada inflexão do verso “The night is like a lovely tune”, com direito a pausas eloquentes entre as três partes nas quais ele o divide: the night – is like – a lovely tune. Refinado, definitivo.
Mas antes de se apaixonar por esta voz originalíssima e o piano minimalista de Andy Bey, é preciso conhecer um pouco de sua história. Nascido e criado em Newark, New Jersey, portanto próximo de Nova York, Andy Bey começou a cantar desde os 8 anos, acompanhado por um gigante do saxofone, Hank Mobley. Aos 13, em 1952, gravou o primeiro CD, “Mama’s little boy’s got the blues”; aos 17 formou o trio vocal Andy & the Bey Sisters. Nos anos 60 e 70, tocou e gravou com Max Roach, Duke Pearson e Gary Bartz, entre outros. Foi parceiro preferencial do criador do hard bop, Horace Silver, até o final dos anos 90. Flertou com Nick Drake e até com Milton Nascimento por volta de 2004.
Aí submergiu. Só voltou à cena em 2013, com um CD no formato piano-voz, “The world according to Andy Bey”. Sua indicação ao Grammy propiciou-lhe o segundo pela mesma gravadora, a Highnote no ano seguinte.
Vale o clichê: sua voz de barítono granulada e com bastante vibrato parece uísque; quanto mais velha, melhor. Ele burila cada verso, cada palavra. Estica as sílabas, extrai delas significados e emoções que a gente não suspeitava existirem. Em suas leituras, canções muito conhecidas, como “How Long has this been going on?”, “Good morning heartache” e “Everything I have is yours” se transfiguram completamente.
É impressionante. Há vários momentos em que a voz se cala e o piano comenta os torturados versos dessas gemas preciosas, verdadeiros lieder do século 20. A mágica repete-se em “Jealousy”, com direito a um falsete antológico; em “I’ve got a right to sing the blues”; e na gema de Cole Porter “Love for Sale”. Andy ainda por cima compõe bem: mostra seu lado sarcástico em “Dod eat dog” e “Humor keeps us alive”. Termina com uma improvável mas antológica versão cheia de “scats” do prefixo da big band de Duke Ellington, “Take the ‘a’ Train”.
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