Ana Cláudia Leocádio - AGÊNCIA CENARIUM
BRASÍLIA (DF) - A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) abandonou, na tarde desta quarta-feira, 28, a Comissão Especial de Conciliação do Marco Temporal do Supremo Tribunal Federal (STF), que discute constitucionalidade da Lei 14.701/2023, que instituiu a Constituição de 1988, como o limite de tempo para a demarcação das terras indígenas.
Em nota lida na segunda audiência da comissão, a entidade se mostrou totalmente insatisfeita com a forma como essa câmara foi criada, porque para os indígenas, esse é um ponto resolvido com a decisão do Supremo, do ano passado, de considerar inconstitucional a tese do marco temporal.
A Comissão foi criada pelo ministro Gilmar Mendes, relator das cinco ações que discutem a constitucionalidade da lei, sancionada no dia 20 de outubro de 2023, que delimitou em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, a data limite para a demarcação das terras indígenas. Essa nova lei foi aprovada pelo Congresso Nacional, depois que o Supremo votou pela inconstitucionalidade do marco temporal, num placar de 9 a 2.
A lei regulamentou o artigo 231 da Constituição Federal, que dispõe sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas, e alterou outras três leis: a 11.460/ 2007, a 4.132/1962, e a 6.001/973, sendo esta última o Estatuto do Indígena. São três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86.
A representante da Apib, Maria Baré, leu a nota emitida pela entidade na qual reconheceu o papel do STF na defesa dos direitos dos povos indígenas, como na pandemia, mas discordam da forma como os trabalhos serão conduzidos pela comissão, que pode decidir por maioria ao final nos temas que forem definidos como importantes para seguir para o plenário do Supremo.
Como autora de uma das ações, a Apib agora informou que vai se pronunciar apenas no âmbito do processo e aguardar a decisão dos 11 membros da Corte. O coordenador jurídico da entidade, Maurício Terena, disse que não pode continuar na comissão enquanto a lei estiver em vigor, porque isto tem elevado a violência contra os povos indígenas e por impedir que a União realize as demarcações das terras, que estão paradas desde que a nova legislação entrou em vigor, ano passado.
Maurício Terena sustentou que, desde que a entidade protocolou a ação no STF questionando a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, aguardam várias respostas da Corte aos seus pedidos, entre eles a suspensão dos efeitos da norma, a definição do ministro Edson Fachin como relator, em vez de Gilmar Mendes, por ter atuado no processo do marco temporal, além do julgamento de um embargo de declaração e um agravo regimental. Nada foi apreciado pelo ministro, segundo ele, motivando a insatisfação dos indígenas e a falta de confiança na comissão de conciliação.
“Nós confiamos no Supremo, nós confiamos na Suprema Corte, nós confiamos no colegiado dos ministros, que já se posicionaram contra a tese do marco temporal. Qualquer medida conciliatória, a partir do dia de hoje, feita sem a presença dos povos indígenas é uma conciliação ilegítima, não porque eu acho, porque o direito brasileiro assim prevê. O direito brasileiro prevê que a autonomia da vontade das partes deve ser respeitada e, assim que uma das partes sai do processo, essa conciliação precisa ser suspensa e a discussão voltar para o plenário do Supremo Tribunal Federal”, afirmou Terena, após se retirarem da sala de reunião.
Declaração gera revolta
O juiz auxiliar Diego Viegas, designado para conduzir os trabalhos da comissão, deixou claro aos indígenas que a saída da Apib não significa que a comissão ficará sem representantes dos povos originários, conforme decisão do ministro Gilmar Mendes. A fala gerou ainda mais revolta entre os representantes da Apib, que consideram um desrespeito porque a entidade é autora de uma das ações. É como se a presença deles não tivesse a mínima importância na decisão final. Para a entidade, a partir de agora, essa Comissão é ilegítima para discutir seus direitos, uma vez que estes já estão assegurados na Constituição Federal e em decisões do STF.
Desde a primeira audiência, os representantes da Apib já se mostraram insatisfeitos com a condução dos trabalhos pelo juiz Viegas, o que gerou vários atritos desde a primeira reunião, no dia 5 de agosto. O magistrado admitiu que possa haver algumas falhas de comunicação e se comprometeu a melhorar a partir desta segunda audiência, mas deixou claro que nenhum membro da comissão terá direito a veto a qualquer direcionamento que seja dado no desenvolvimento das propostas. Ele ainda fez um apelo para a Apib permanecesse até o final da reunião, mas foi em vão, porque a entidade já chegou com a decisão pronta, que foi tomada após consultas às bases em todas as regiões do País.
Comissão prosseguirá os trabalhos
Após a saída dos indígenas da Apib da audiência de conciliação, o ministro auxiliar Diego Viegas deu continuidade aos trabalhos seguindo o cronograma definido pelo ministro Gilmar Mendes. Não ficou claro como eles substituirão os membros da Apib na comissão para as próximas reuniões, já agendadas para 9 e 23 de setembro.
Uma das determinações, segundo o magistrado, será superar a questão do marco temporal porque esta já foi resolvida pelo Supremo, no ano passado. O trabalho, segundo ele, agora passa a ser buscar soluções para os conflitos no campo que envolvem produtores rurais e indígenas. A sugestão é pensar soluções previstas tanto na lei contestada quanto sem ela.
Ficou decidido que a Fundação Nacional do Indígena (Funai) apresente um levantamento da situação das terras indígenas, em processo de demarcação, declaração, homologação e outras finalidades, para se estipular uma estimativa de valores monetários para cada uma delas. A ideia é definir quanto custaria à União a indenização dos produtores que precisarem ser retirados de terras que forem demarcadas futuramente.
Indenizações
A Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul) estima em R$ 200 bilhões o valor das indenizações de 9 milhões de hectares de terras atualmente em litígio com os indígenas.
O presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Marcelo Bertoni, disse se sentir incomodado porque não viu na comissão preocupação com os produtores, que passaram a ser chamados de invasores das terras indígenas. Ele, que é produtor do Mato Grosso do Sul, disse esperar que se tenha uma solução para o problema. Segundo Bertoni, em seu estado há 150 fazendas em conflitos com os indígenas.
Para o dirigente, o fato de terem apresentado a proposta de se calcular as indenizações para os agricultores é um avanço à discussão do marco temporal. “A discussão maior foi em cima das indenizações, justa e prévia. E aí, sim, uma importante decisão”, afirmou Bertoni, para quem essa solução resolveria as injustiças tanto contra os indígenas quanto contra os produtores, que estariam nas terras de forma legal e hoje se veem em meios aos conflitos pela posse.
REDES SOCIAIS