Fundação Padre Anchieta

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Arquivo pessoal
Arquivo pessoal Kátia e Valentin

Desde criança, a morte nunca foi algo ‘escondido’ de mim, tenho lembranças de alguns velórios e não me recordo de nenhuma repreensão dos meus pais quando estava em algum. Minha mãe nunca foi de chegar muito perto do caixão por não gostar de ver o morto, mas eu nunca tive medo e sempre dava um jeito de olhar. 

Cresci enxergando a morte como um processo natural da vida. Esse ambiente sempre me despertou curiosidade, eu tocava o morto pra sentir se a mão estava gelada, (às vezes imitava as pessoas que chegavam perto, rezavam e saiam); eu também gostava de observar as pessoas que iam ao velório: as que choravam, as que riam, as que ficavam em um canto. Tentava decifrar na minha cabeça porque estavam daquele jeito.

Vim de uma família católica e espírita, porém a minha curiosidade em relação à outras religiões começou no budismo porque eu admirava a forma com que eles enxergam a questão da impermanência, o morrer e a forma de ritualizar a morte. Depois do budismo, tive contato com outras religiões e hoje sou uma pessoa sem religião definida. Eu aproveito tudo o que existe de bom em cada religião que conheci, porque, para mim, a maioria delas fala sobre amor e fé. Minha fé não tem casa e no meu coração há amor de sobra.

Em Julho de 2014, fiz uma viagem e conheci um homem estrangeiro que estava de passagem no Brasil para cobrir a Copa do Mundo. Após passarmos a noite juntos, entrei em um rio, chamei Oxum e pedi para que ela me transformasse. Como é uma entidade da beleza, da riqueza, do amor e da prosperidade, eu clamei para que ela agisse sobre a minha vida; eu tinha acabado de sair de um emprego e estava devastada. 

Mesmo tomando os cuidados necessários para evitar uma gravidez, em agosto me descobri grávida deste homem, que mesmo morando em outro país, disse que não seria justo que eu tivesse esse filho e me pediu para aborta-lo. Como tinha planos de ser mãe, inclusive solo, aos 31 anos decidi levar a minha gestação sozinha, o que eu não sabia era que meu filho teria muitas dificuldades a enfrentar. 

No primeiro exame foi constatado que ele tinha artéria umbilical única e eu passei a ser atendida em uma especialidade chamada medicina fetal. A partir dali, todo o meu ideal de maternidade morria a cada consulta médica. No primeiro exame morfológico meu mundo caiu. “Tem algo errado com o coração do seu bebê”, me disseram. 

Travei uma luta para que meu filho fosse diagnosticado, e no mês de dezembro, já medicada contra depressão, recebi a pior das notícias: ele tinha uma síndrome genética rara, uma deleção do braço longo do cromossomo 18. Na época, a Santa Casa de Misericórdia enfrentava uma grande crise, e além da síndrome (del18q21), meu filho foi diagnosticado com hipoplasia do ventrículo direito (uma cardiopatia grave) e outras anomalias no coração.

Os médicos diziam que, enquanto ele estivesse na minha barriga, poderia sobreviver, mas não sabiam o que aconteceria depois de seu nascimento. A Santa Casa não garantia os cuidados necessários para o meu filho e nem a medicação que ele precisaria quando nascesse.

Tentei um serviço de filantropia em uma instituição particular, refizeram todos os exames, mas quando descobriram a síndrome, disseram que não iriam investir cuidado em uma criança com uma síndrome que ameaça a vida.

Pensei em suicídio pela primeira vez, não iria suportar não garantir os cuidados que meu filho precisava. Por meio de ajuda de amigos, consegui encontrar um centro de referência cardiológica, mas para receber atendimento, precisei ser admitida em outro hospital. 

Durante o exame para ser admitida, sofri assédio moral do médico responsável pelo setor e precisei engolir meu choro porque dependia dele. Decidi usar toda a minha energia para garantir que meu filho fosse atendido naquele hospital. Se eu não conseguisse, já tinha pensado em como nós dois morreríamos.

Conseguimos. Se minha gestação avançasse mais uma semana, pelas regras do hospital, eu não poderia ser atendida. Na época, estava com 32 semanas. Passei a ser atendida no IPQ e comecei a criar formas de encarar meu luto antecipatório. Rezava em todas as línguas, fiz uma cirurgia espiritual, frequentei um centro de umbanda, procurei histórias na internet, além de ler o livro “Até breve, José”, de Camila Goytacaz, e de ver um vídeo no Youtube chamado “99 balões”.

“Meu amor não é egoísta, deixe ele descansar”

Apesar de enfrentar um sofrimento imenso, viveria com muito amor cada fase da vida do meu filho, independente de quantos dias ele vivesse.

Valentin fez duas cirurgias, vivi com ele seis meses em uma UTI cirúrgica e foi ali que recebi os maiores ensinamentos da minha vida. Aprendi sobre viver e sobre morrer também. Nessa UTI eu vi a morte muitas vezes e o comportamento humano diante deste momento me fez pensar sobre o amor, se ele seria egoísta ou livre.

Muitas vezes em um ato de desespero (e de amor) eu ouvia: “Faça tudo que tiver que ser feito”.
Doía ver as crianças sofrendo depois da investida, algumas com as extremidades pretas por conta da falta de oxigenação, outras exalando cheiro de decomposição, com o coração quase exteriorizado devido à tantas reanimações.

Conhecia histórias de muitas crianças que se foram depois da prece sincera de suas mães, que “entregavam" seus filhos a Deus por não suportarem vê-los em tanto sofrimento. Valentin passou por várias intercorrências, mas evoluiu. Um dia antes da alta, chamei a equipe médica para tirarmos uma foto e uma cena me chamou a atenção: era a primeira vez que ele não chorava no colo de um médico que sempre estava ao nosso lado, desde a primeira cirurgia. Eu pensei genuinamente que ele estava se despedindo. 

Na manhã seguinte, meu filho acordou muito choroso, nada o acalmava, até banho de camomila dei nele. Depois de vestí-lo, vi que sua boca estava branca. Nesse momento, ouvi uma voz em meu ouvido: “Seja forte, ele vai partir”. Seu coração estava com os batimentos muito baixos, senti meu peito doer, gritei pedindo ajuda e me tiraram dali, eu dizia: “Ele não vai voltar, a voz me falou”.

Meu filho foi reanimado por mais de uma hora, eu sentia em mim que ele não iria voltar, e se voltasse, tão fragilizado, como voltaria? “Meu amor não é egoísta, deixe ele descansar”, pedi mais de uma vez e fui atendida. Fui até o leito me despedir dele, peguei ele no colo, cantei, desejei que ele fosse recebido com música e cuidado pela espiritualidade. Depois, o entreguei para minha mãe e sai.

Vivi um luto complicado, meu filho me deixou horas antes de sair do hospital. Hoje penso que foi melhor assim, não conseguiria sobreviver se ele tivesse passado mal em casa sem que conseguisse salvá-lo.

Fiz terapia com foco no luto, pensei em me matar mais duas vezes. Entendi que o suicida não se mata por falta de Deus, muitas vezes essa é a única forma de acabar com uma dor que nenhuma fé sustenta. Tomei remédios, frequentei grupos de apoio e fiz terapia para pessoas enlutadas por iniciativa da minha irmã mais nova. Só lá consegui entender que os outros membros da minha familia sofriam tanto quanto eu. Minha avó paterna foi enterrada no mesmo cemitério que o meu filho dois meses antes, pensei na dor do meu pai ao perder a mãe e o neto e ao ver meu sofrimento.

A estadia na UTI, a perda do meu filho e o luto transformaram minha forma de enxergar a vida e a morte. Perdi totalmente a crença de que nascemos, crescemos e morremos, e de que a morte não é cronológica. 

Quando sentia que nada mais me ajudaria, uma pessoa me convidou para um ritual xamânico com índios da tribo Yawanawa. Confesso que esse ritual me resgatou do escuro de onde estava e comecei a perceber uma melhora no meu luto.

O verbo “superar" na sociedade vem acompanhado da idéia de que precisamos esquecer. Mas quem sofre um luto não quer esquecer, a gente quer lembrar de quem se foi, e de vez em quando, a gente vai se emocionar. Por favor, não tente amenizar nossas lágrimas e as nossas emoções, nós também queremos honrar nesta Terra a trajetória de quem se foi.

E assim, sempre em busca da vontade de honrar a existência do Valentin na Terra, comecei a cortar o cabelo das crianças na UTI onde ele viveu e morreu. Em uma tarde, fui chamada para dar apoio a uma amiga que fiz na UTI, para que ela se despedisse do seu filho. Lá estava eu, entrei com ela no leito em que seu filho estava morto, rezei com ela e a acolhi com meu coração…

Anos se passaram e eu comecei a sonhar que entrava em comunidades e as pessoas me seguravam pelas mãos, me levavam de casa em casa, e apertavam a minha mão como se estivessem me agradecendo, eram mãos de crianças e de idosos. Sonhei com isso mais de uma vez e em uma noite, antes de dormir, eu pedi: “Sei que vocês estão querendo me mostrar alguma coisa, eu já ajudo as pessoas, o que mais eu posso fazer? Por favor, sejam claros.”

O sono não veio como deveria, liguei a televisão e estava passando o programa “Conversa com Bial”. Ele estava entrevistando a Dra. Ana Cláudia Quintana Arantes. “É isso”, pensei. Foi isso que eu aprendi com o Valentin: amar até o fim, cuidar quando ninguém mais acha que é importante cuidar. 

Comprei o livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, da Dra. Anna Cláudia, e no dia 08 de Agosto de 2018 enviei uma mensagem para a Academia Nacional dos Cuidados Paliativos para me candidatar como voluntária, e então, eles me enviaram uma lista dos lugares que prestavam cuidados paliativos em São Paulo. Não curti, queria prestar uma ajuda um tantinho maior, mas não sabia como começar.

Projeto Valentin 

Em um dia, conversando com uma das enfermeiras que cuidou do Valentin, ela me contou que uma colega estava fazendo um trabalho com uma médica paliativista. Entrei em contato e ela falou sobre mim para a médica, que então, marcou um encontro comigo junto com uma amiga psicóloga. 

Ela queria ouvir a minha história e saber como poderia me ajudar. Quando saí desse encontro, a médica criou um grupo no WhatsApp chamado “Projeto Valentin”, para homenageá-lo. Deste encontro saiu uma participação na Virada Zen de São Paulo para acolher pais enlutados e uma palestra sobre gratidão no hospital onde meu filho morreu voltada aos profissionais da área da saúde. Eu fui agradecer por todo o cuidado que ele teve, e neste dia, também palestrou a Profª Maria Helena Pereira Franco, uma das mulheres mais conhecidas no universo do luto aqui no Brasil.

Dentro do “Projeto Valentin” eu pude colaborar com algumas idéias dentro da instituição hospitalar para humanizar a questão do luto. Segui a minha jornada lendo muitos livros e tive a oportunidade de conhecer Heloisa Salgado, psicóloga que escreveu o livro “Como lidar com o luto perinatal”, voltado aos profissionais de assistência obstétrica para lidarem com mães e familiares que enfrentam a perda de um bebê. Junto com ela também relatei minha experiência em um hospital e maternidade de Vila Nova Cachoeirinha.

Segui tentando cumprir a minha missão, mas ninguém queria dar uma chance a uma pessoa que não era da área da saúde. Em Setembro de 2019, fui aceita em um curso de Cuidados Paliativos. Naquele momento, eu já sentia que estava no caminho certo, e lamentava profundamente por meu filho não ter tido a chance de receber este cuidado desde o seu nascimento. Cuidado Paliativo não é pra quem está morrendo, é para qualquer pessoa que enfrenta uma doença que ameace a vida.

Ajudar as pessoas a morrerem

Em uma noite tive outro sonho. Estava em uma praça, sentada em um banco, e um homem muito alto com as costas grandes falou: “Eu sou um anjo da morte!” Eu respondi: “Eu não quero matar ninguém, nasci pra viver”, e ele prontamente me respondeu: “Quem disse que você vai matar alguém? Você vai ajudar as pessoas a morrerem!”

Fiz uma pesquisa no Google e apareceu “end of life doula”, comecei a ler sobre, e descobri que no exterior elas já trabalham há muitos anos. Comecei a me questionar se aqui no Brasil tinha algo do tipo. Nessa época, eu estava inscrita no Festival Infinito, que aborda conversas sinceras sobre o viver e morrer. 

Quando cheguei lá, Tom Almeida, idealizador do evento, apresentou um curso de doulas da morte que começaria dois dias depois. Inacreditável! Mandei uma mensagem para uma das organizadoras e ela me disse: “queremos ter você aqui!”

Durante o curso, meu avô teve um avanço muito grande de sua doença, e eu encorajei minha família para que ele fosse transferido para um hospital em que tivesse acesso a cuidados paliativos. No hospital, a geriatra disse que ela mesma estava fazendo cuidados paliativos no meu avô, mas não achava que eles eram efetivos. Por questões familiares, ele seguiu neste setor.

Em uma visita, percebi que meu avô estava morrendo. Abaixei a proteção da cama, me aproximei, e aos poucos ele aproximou a testa dele na minha. Nos olhamos nos olhos e ali eu tinha certeza de que era a última vez que nós nos veríamos.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes de eu entrar no quarto, ele faleceu. Eu queria tanto estar com ele nos momentos finais, que enquanto olhava seu corpo ainda quente, olhei para cima e pensei: “Tá bom, eu já entendi, eu vou continuar!"


Em dezembro de 2019, me formei como Doula da Morte. Dediquei meu curso ao meu filho Valentin que morreu no dia da alta hospitalar, ao meu avô Luiz, às crianças que já se foram e que eu tive o privilégio de conhecer e cuidar. Também não posso esquecer da minha querida avó Genilda e da Cris, uma enfermeira que cuidou do meu filho e morreu de câncer. 

Depois, fiz um curso chamado Últimos Socorros, para saber o que fazer nos momentos finais. Também participei de lives, criei um projeto chamado Doulas da Morte na Quarentena, fiz um curso sobre Inteligência espiritual, e estou com dois novos ciclos de aprendizados em andamento, um no “O lugar (Ciclo Vida e Morte)”, e outro no “Como ajudar quem está morrendo”, da Dra. Anna Claudia Quintana Arantes, e até o final do mês inicio um novo, o “Sentinelas, guardiões do fim de vida”, dentro da Casa do Cuidar.

Mas o que faz uma doula da morte? Nós não substituímos a medicina, os cuidadores, terapeutas ou a equipe de enfermagem. Nós oferecemos apoio espiritual, emocional e sustentamos a dignidade do ser envolvido até o final. Podemos fazer companhia à pessoa nos momentos finais, ajudamos a realizar os últimos desejos, a construir memórias afetivas que podem colaborar com o processo do luto e de conflitos que possam surgir entre os membros da família. Durante nossa formação, a gente lida com a finitude como um processo natural da vida.

A morte é implacável, mas nem por isso ela precisa ser solitária. Em tempos de pandemia, faço a reflexão de que se estivéssemos mais evoluídos sobre a atuação da doula, muitos pacientes poderiam ser beneficiados desta presença de amorosidade e dignidade nos momentos finais.
Não atuo profissionalmente ainda, mas sigo fazendo meu papel diante da minha comunidade. 

Tenho buscado formações que me tragam bagagens e que complementem o meu propósito de vida, que é estar integralmente presente na vida de quem está morrendo e de seus familiares. Acredito que em breve teremos portas abertas para poder atuar e somar o trabalho de tantos profissionais que se dedicam ao fim da vida de pessoas que são o amor da vida de alguém.

“Você é importante porque você é você. E você é importante até o fim da vida. Faremos todo o possível não para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para fazer você viver até o momento de morrer.”( Cicely Saunders)