Casos de violência sexual infantil não são isolados no Brasil. A cada hora, quatro crianças ou adolescentes sofrem violência, segundo organização de defesa dos direitos infantis. De acordo com balanço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em média, são cerca de 37 por dia.
Segundo os dados do Ministério, somente nos quatro primeiros meses do ano, foram registradas 4.486 denúncias de abuso sexual sofrido por crianças e adolescentes no Brasil. Apesar dos números serem altos, a pasta ressalta que os índices podem ser maiores, uma vez que apenas dez em cada cem casos de vulnerabilidade, coação e medo são denunciados.
O site da TV Cultura conversou com Luciana Temer, diretora presidente da ONG Liberta. A advogada diz que o assunto sobre violência infantil ainda não é muito discutido porque a maioria dos casos acontecem em ambientes familiares.
Ainda segundo os dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, cerca de 75,9% dos casos de abuso ocorrem no ambiente domiciliar. Dentro desse total, em 40% dos episódios, são cometidos pelos próprios pais ou padrastos.
“Acho que precisamos falar desse assunto com mais transparência. E faço uma diferença em relação à situação da menina e da mulher. Nos últimos anos, tem se falado muito sobre violência contra mulher, inclusive violência sexual, o que não impede que os casos aconteça. É muito sério, é muito grave. Hoje, as vítimas de estupro no país são crianças de menos de 13 anos de idade. O país ainda não aprendeu ainda falar de violência sexual contra crianças e adolescente. A violência é, na sua maioria das vezes, uma violência intrafamiliar, então fica mais difícil ainda falar”, aponta.
A pasta ainda mostra outro dado alarmante. Em 2021, dos 18.681 registros, quase 60% da vítimas tinham entre 10 e 17 anos. A violência contra meninas representa 74% dos casos.
De 8.494 casos, a vítima e o suspeito moravam na mesma residência. Outros 3.330 aconteceram na casa da vítima e 3.098 na casa do suspeito.
Um levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unifec) mostra ainda que entre 2017 e 2020 foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos, uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos, um terço do total.
As meninas são quase 80% do total. Os casos envolvem vítimas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a idade mais frequente.
“A violência é muito fortemente intrafamiliar quando é contra crianças e adolescentes. Por isso ele é ainda mais silenciado, a gente precisa tirar esse silêncio da invisibilidade”, diz Luciana.
Educação sexual e o papel das escolas
A advogada afirma que o tema tem que ser discutido nas escolas. Luciana ressalta que a educação sexual precisa ser levantada nos ambientes escolares. A diretora da ONG ainda relembra o caso do Reino Unido, segundo ela, as conversas levaram a diminuição de gravidez na adolescência, doença sexualmente transmissível e com as meninas começando a vida sexual mais tarde.
“Está faltando uma conversa de adultos responsáveis sobre sexualidade com os jovens. Não estamos falando com eles, mas a pornografia está, e eles estão aprendendo a se relacionar a partir da pornografia. A pornografia é violenta, pouco empática e ainda se baseia em situações de estupro muitas vezes. Então, precisamos romper com esta lógica totalmente equivocada de que falar sobre sexualidade nas escolas incentiva a prática de sexo de crianças e jovens”, argumenta.
“Quando a gente fala de educação sexual nas escolas, estamos falando de falar a linguagem adequada, o assunto adequado para cada uma das idades. É disso que está falando, hoje, existe material super adequado para falar desde crianças pequenas até adolescentes. É preciso trazer experiências de outros lugares, de onde isso já acontece e os resultados nesses. Para isso acontecer, a sociedade precisa estar debatendo essa violência. Porque, por enquanto, não é um problema na sociedade. A gente tem que transformar a questão em problema, a sociedade precisa se sentir desconfortável e começar a debater”, acrescenta.
Além de ter um papel importante na educação sexual, as escolas ainda são fundamentais na descoberta de casos de violência sexual contra crianças. Em geral, os professores percebem comportamentos diferentes das crianças, além disso, as próprias vítimas procuram os educadores para contar situações de assédio.
Em maio deste ano, dez alunos denunciaram terem sido vítimas de abuso sexual após assistirem a palestras sobre o assunto em escolas de Campo Limpo de Goiás.
A pandemia da Covid-19 gerou um impacto nas denúncias de violência infantil. As aulas online reduziram o contato entre alunos e professores. Um estudo do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), do Instituto Sou da Paz, e da Unicef mostra que nos meses mais severos da crise sanitária houve maior dificuldade para a realização de denúncias.
O relatório divulgado no final de 2020 relevou que as denúncias de estupro de vulneráveis vinham crescendo nos últimos anos, mas, no primeiro semestre de 2020, apresentaram redução significativa (-15,7%), sobretudo nos meses de abril (-36,5%) e maio (-39,3%), em comparação ao mesmo período do ano anterior.
No primeiro semestre de 2020, os crimes em residências do Estado de São Paulo foram de 84%, tendo chegado a 88% no mês de maio, superando o percentual de 79% observado ao longo dos anos anteriores. O crime correspondeu a 75% do total de estupros registrados no Estado de São Paulo no primeiro trimestre, tendo as crianças como as maiores vítimas.
“Você teve uma queda da denúncia de violência sexual. Isso significa que diminuiu a violência sexual contra crianças e adolescentes? Não. Significa que elas não foram notificadas. Por que elas não foram notificadas? Porque as crianças não foram para escola. A escola é um canal muito importante de denúncia”, destaca Luciana.
A diretora do Liberta ainda conta uma experiência que foi realizada na ONG durante a pandemia. Em conjunto com a secretaria municipal do Estado de São Paulo, a instituição desenvolveu um site com uma tecnologia que conversava com jovens a partir de um mediador. “O robô fazia uma conexão direta com 82 educadores da Secretaria Municipal de Educação que estavam prontos para dialogar com os jovens. Em nove meses de experiência, nós tivemos 18 denúncias de violência intrafamiliar”, explica.
Retrospecto na América Latina
Uma pesquisa da organização social Visão Mundial, divulgada em 2018, revelou o Brasil em primeiro lugar como o mais violento, na comparação com 13 países da América Latina. O levantamento avaliou a percepção da sociedade sobre a violência praticada contra as crianças e os adolescentes.
No Brasil, 13% dos entrevistados afirmaram que existe alto risco dessas práticas contra a criança no país. Em seguida, estão o México, com 11%, o Peru e a Bolívia, com 10%. As melhores percepções foram verificadas em Honduras e na Costa Rica, com 2%.
Instituto Liberta
O trabalho do Instituto Liberta é fazer com que a violência infantil seja discutida e enfrentada. Neste mês de julho, realiza a ação “Agora Você Sabe”, uma passeata virtual contra a violência sexual em crianças e adolescentes.
“A campanha convida pessoas adultas a saírem feste lugar de constrangimento e admitir, em três frases, que sofreram alguma violência na infância ou na adolescência”, explica Luciana.
A ação possui quatro fases: A primeira passeata virtual foi em maio. A segunda acontece em 28 de Julho e a última no dia 31 de agosto.
“Convidamos pessoas de mais de 18 anos para entrar no site agora ‘agora.você sabe.com.br’ para identificarem se foram vítimas ou não. As pessoas não sabem, mas a violência sexual não é só o estupro consumado, com penetração. A violência sexual, pelo código penal, pode até não ter toque nenhum e ainda assim ser considerado violência. Nós temos que dizer não para toda e qualquer violência sexual contra crianças e adolescentes. Por isso, é muito importante que a pessoa saiba o que é uma violência sexual. No site, existe um ícone que explica o código penal”, acrescenta a advogada.
“A pessoa não precisa contar sua história. O objetivo é mostrar para a vítima que ela não está sozinha, o nome sai junto com muitas pessoas, como se fosse uma passeata de verdade. No final de agosto, acabando a última etapa da passeata”, finaliza.
Serviço:
Como denunciar
Casos de violência contra crianças e adolescentes podem ser denunciados pelo Disque 100. Além disso, também é possível fazer denúncias pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e pelo WhatsApp 61-99656-5008
Em 2021, 48,4% (9.053) das denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, por meio do Disque 100, foram feitas de forma anônima.
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