'Crescimento sem emprego veio para ficar', diz sociólogo italiano Domenico De Masi
Criador do conceito de 'ócio criativo' defende a redução das horas de trabalho e a renda básica universal. Crítico a Bolsonaro, afirma que o Brasil deve retomar 'sua jornada de grande democracia' após o fim do mandato do ex-militar.
11/12/2021 15h55O crescimento econômico sem emprego — a capacidade de produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho humano — é uma das tendências do mundo do trabalho evidenciadas pela pandemia que vieram para ficar, avalia o sociólogo italiano Domenico De Masi.
Criador no início dos anos 2000 do conceito de "ócio criativo" — a ideia de que o justo equilíbrio entre trabalho, estudo e descanso favorece a capacidade inventiva —, De Masi opina que a única maneira de evitar que o desemprego aumente de forma incontrolável é reduzir as horas de trabalho à medida em que a tecnologia avança.
O sociólogo também defende o Estado de bem-estar social e políticas de renda básica universal, num mundo onde o emprego é cada vez mais instável.
"É cada vez mais frequente uma experiência de trabalho composta por múltiplos empregos que se sucedem e se entrelaçam, intercalados com períodos de desemprego; empregos temporários, "gig economy" [economia dos aplicativos], contratos periódicos", enumera De Masi.
"Isso induz todos os trabalhadores a um sentimento de precariedade", diz o sociólogo.
"Uma vez que o tempo para encontrar trabalho, ou reencontrá-lo, será mais longo, nos interstícios, será necessário que todos tenham a garantia de uma sobrevivência digna, assegurada através de uma renda básica de cidadania e, posteriormente, de uma renda universal", defende.
Crítico de Jair Bolsonaro (PL), amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e entusiasmado pelo Brasil, De Masi citava o país como um exemplo para o resto do mundo, em seu livro O futuro chegou, publicado em 2013 — ano em que, à despeito dos grandes protestos nas ruas, o Brasil registrou uma das menores taxas de desemprego de sua história, às vésperas da profunda crise econômica que teria início no ano seguinte no governo de Dilma Rousseff.
"Depois de ter copiado a Europa por 450 anos e os Estados Unidos por mais de 50 anos, agora que ambos os mitos-modelos estão em profunda crise, o gigante latino-americano está sozinho consigo mesmo, enfrentando seu futuro", diz De Masi, sobre o Brasil.
"Esta é uma situação inquietante, que pode se dissolver em confusão ou pode gerar o modelo sem precedentes que o mundo precisa. Acredito firmemente nessa segunda hipótese."
Confira os principais trechos da entrevista concedida por Domenico De Masi à BBC News Brasil.
O sociólogo participou em novembro do evento Seminários Cultura e Democracia, organizado pelo Instituto Cultura e Democracia, Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo. A tradução do italiano é de Marcella Ferr.
BBC News Brasil - Quais são, na sua avaliação, as mudanças mais importantes no mercado de trabalho causadas pela pandemia?
Domenico De Masi - Após a pandemia, e por causa dela, o mercado de trabalho sofrerá mudanças significativas. O lockdown prolongado tornou necessário fechar muitos negócios e, portanto, tem causado uma redução acentuada em suas atividades e a falência das empresas mais frágeis, com a consequente demissão de toda ou parte de sua força de trabalho.
Enquanto isso, as empresas que tinham capital para investir adotaram novas tecnologias, substituindo o trabalho humano. Por fim, a disseminação do trabalho remoto, permitindo que milhões de pessoas trabalhassem em casa, possibilitou reduzir o uso de veículos, combustíveis e refeitórios de empresa etc., causando desemprego nesses setores.
Enquanto isso, a grande transformação do trabalho que começou há 200 anos continuou.
Os operários, que no início do século 20 representavam a grande maioria da população ativa em todo o mundo industrializado, agora, substituídos por máquinas eletromecânicas e robôs, foram reduzidos a apenas um terço; outro terço é composto por funcionários, por sua vez, substituídos por computadores; outro terço, por fim, é representado por trabalhadores criativos: executivos, gerentes, dirigentes, empresários, profissionais, cientistas, artistas.
O que está claro para nós também hoje é que a pandemia ama bilionários.
Em 2020, de acordo com o Índice de Bilionários da Bloomberg, a fortuna total dos 500 mais ricos do mundo cresceu 31% em relação ao ano anterior.
BBC News Brasil - Quais dessas mudanças devem se tornar permanentes?
De Masi - Nos últimos anos, a oferta de mão de obra cresceu porque a população mundial aumentou, mas a demanda diminuiu devido ao progresso tecnológico.
O trabalho que as máquinas nunca poderão tirar do homem é o de natureza cognitiva e criativa.
É fácil prever que, para os responsáveis pelas tarefas executivas, sejam eles trabalhadores manuais ou administrativos, as horas de trabalho semanais serão progressivamente reduzidas, enquanto seu tempo livre aumentará.
Graças ao trabalho remoto, o trabalho vai se desconstruindo cada vez mais no tempo e no espaço; para os trabalhadores criativos, o limite entre o trabalho e o não trabalho será cada vez mais tênue, dando vida àquela ociosidade criativa em que estudo, trabalho e lazer coincidem.
As três mudanças que a pandemia tem evidenciado, e que certamente permanecerão nos próximos anos, são o crescimento sem emprego (jobless growth), ou seja, a capacidade de produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho humano; a disseminação do trabalho remoto e a difusão do comércio eletrônico.
O trabalho remoto representa um primeiro passo na revolução histórica que está mudando nossa vida profissional e familiar: uma revolução que continuará mesmo após a pandemia e que ninguém poderá impedir.
Em dezenas de organizações, a experiência do trabalho remoto realizada forçosamente nos últimos meses tem sido acompanhada por pesquisas sociológicas para monitorar seus efeitos.
A maioria dos chefes entrevistados diz que a produtividade geral de seus funcionários aumentou, e a maioria dos trabalhadores diz estar disposta a continuar trabalhando remotamente mesmo após a pandemia.
Quanto ao comércio eletrônico, durante a pandemia, ele cresceu exponencialmente.
Antes do início da pandemia, a Amazon valia US$ 916,2 bilhões; após um ano, valia US$ 1,6 trilhão. Em 2020, Jeff Bezos, dono da Amazon e o homem mais rico do mundo, faturou US$ 8,99 bilhões por mês. Sua fortuna pessoal passou de US$ 115 bilhões em 2019 para US$ 196 bilhões em 2020.
Se distribuísse apenas uma parte desse valor, dando um bônus de US$ 10 mil para cada um de seus 840 mil funcionários no mundo, talvez ele nem percebesse.
BBC News Brasil - O senhor tem falado com entusiasmo sobre o trabalho remoto. Mas, no Brasil, onde o acesso à tecnologia é muito desigual e os empregos informais de baixa remuneração são a maioria, o trabalho remoto durante a pandemia se mostrou um privilégio dos trabalhadores de maior nível educacional. Não é utópico falar sobre como o trabalho remoto permite o lazer criativo em sociedades tão desiguais?
De Masi - O trabalho remoto diz respeito ao trabalho intelectual e requer aparatos tecnológicos como o computador e a internet.
Portanto, é necessário criar as condições para que todos os cidadãos possam ter acesso à internet, não apenas para o trabalho remoto, mas também para se informar, conectar e interagir diariamente.
Porém, para todos aqueles que realizam o trabalho no escritório, mas que possuem equipamentos tecnológicos adequados para fazer o mesmo trabalho em casa, deveria ser imediatamente permitido o trabalho remoto.
Em muitos casos, não são deficiências tecnológicas, mas deficiências culturais que dificultam a disseminação do trabalho à distância.
Muitos chefes — especialmente chefes de pessoal — se opõem ao trabalho remoto por um conceito antiquado de poder que eles identificam como um controle constante, físico e obsessivo de seus funcionários.
BBC News Brasil - Como os países devem responder ao avanço do desemprego e da desigualdade em um mercado de trabalho em transformação, que expulsa os menos qualificados, ao mesmo tempo em que cria poucas novas posições, altamente especializadas?
De Masi - Nos últimos 200 anos, quatro grandes ondas tecnológicas se sucederam: a das máquinas mecânicas no início do século 19; a das máquinas eletromecânicas no início do século 20; a da tecnologia da informação nas últimas décadas do século 20; e a da inteligência artificial atualmente.
Cada uma dessas ondas tirou empregos dos homens, substituindo-os por máquinas e causando o desemprego tecnológico. As primeiras máquinas e robôs substituíram operários; computadores substituíram funcionários; a inteligência artificial substituirá gestores e profissionais.
Em outras palavras, estamos aprendendo a produzir cada vez mais bens e serviços com menos trabalho humano. Cem anos atrás, havia 40 milhões de italianos que, em um ano, trabalhavam 70 bilhões de horas; hoje são 60 milhões e trabalham 40 bilhões de horas.
Ainda assim, eles produzem infinitamente mais. Este é o fenômeno do crescimento sem emprego, que se acentuará com a difusão das biotecnologias, nanotecnologias, novos materiais, impressoras 3D, plataformas, reconhecimento de voz e inteligência artificial.
A única maneira de evitar que o desemprego aumente de forma incontrolável é reduzir as horas de trabalho à medida que a tecnologia avança.
Segundo dados da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], um francês trabalha 34,4 horas por semana e um alemão, 30,8 horas. Não surpreende que o nível de emprego seja de 70% na França e 79% na Alemanha.
Recentemente, a imprensa relatou os resultados de um experimento realizado na Islândia com 2.500 médicos, enfermeiros e policiais, para testar o que acontece quando se trabalha uma hora a menos por dia pelo mesmo salário.
Como os resultados têm sido excelentes em todos os aspectos, os empregadores e sindicatos islandeses concordaram em reduzir as horas de trabalho de 40 para 35 horas semanais para 86% de todos os trabalhadores daquele país, mantendo os salários inalterados.
BBC News Brasil - Qual será o papel da renda básica universal neste novo mundo?
De Masi - Durante dois séculos, a sociedade industrial se concentrou na segurança: o jovem de 18 anos que entrava numa empresa sabia que permaneceria lá até a aposentadoria e sabia de antemão os anos de aumento do seu salário e a progressão de sua carreira.
Com o triunfo da economia neoliberal, a partir dos anos 1980, sob [o presidente americano Ronald] Reagan e [a primeira-ministra britânica Margareth] Thatcher, o fenômeno da precarização se acentuou e os riscos aumentaram.
Para quem trabalha, aumentou a insegurança, a duração e intensidade do trabalho, a flexibilidade, a multiatividade, a informalidade e a descontinuidade. Para quem não trabalha, aumentou a precariedade e a miséria, a desorientação e a depressão.
Costuma-se dizer que, para erradicar a pobreza, é necessário crescimento econômico.
Primeiro Reagan e depois Bush pai [o presidente americano George H. W. Bush] implementaram as ideias neoliberais dos economistas [Simon] Kuznets e [Arthur] Laffer de que os impostos dos ricos deveriam ser reduzidos para incentivá-los a investir e, ao mesmo tempo, desencorajá-los de sonegar impostos. Dessa forma, essa riqueza crescente beneficiaria os pobres, aliviando sua condição.
Em vez disso, a história mostra que o número de pobres aumenta, mesmo quando a riqueza cresce, porque sabemos como produzir riqueza, mas não sabemos, ou não queremos, distribuí-la.
Portanto, se queremos evitar que a pobreza se traduza em conflito e que o conflito transborde para a violência, devemos recorrer ao Estado de bem-estar social.
É cada vez mais frequente uma experiência de trabalho composta por múltiplos empregos que se sucedem e se entrelaçam, intercalados com períodos de desemprego; empregos temporários, gig economy [economia dos aplicativos], contratos periódicos, etc.
Isso induz todos os trabalhadores a uma sensação de precariedade. Como disse o sociólogo francês André Gorz: 'Uma coisa é certa: somos todos, potencialmente, excedentes'.
Uma vez que o tempo para encontrar trabalho, ou reencontrá-lo, será mais longo, nos interstícios, será necessário que todos tenham a garantia de uma sobrevivência digna, assegurada através de uma renda básica de cidadania e, posteriormente, de uma renda universal.
BBC News Brasil - Qual o senhor acredita ser o futuro dos empregos da gig economy? Há alguma maneira de os trabalhadores recuperarem direitos em um mundo onde os consumidores se acostumaram a serviços cada vez mais baratos e rápidos?
De Masi - O comércio eletrônico torna os consumidores cúmplices dos produtores em detrimento dos transportadores.
Os empregos da gig economy aumentarão cada vez mais em número e a exploração desses trabalhadores será cada vez mais cruel, até que eles se sindicalizem radicalmente ou até que sejam completamente substituídos por drones e pela inteligência artificial.
Por enquanto, a vitória do neoliberalismo sobre o socialismo é esmagadora. Isso se deve ao fato de que os explorados perderam a consciência de classe, não se sindicalizam, não se organizam para lutar contra aqueles que os exploram e nem mesmo sabem precisamente quem os explora.
BBC News Brasil - Em 2013, em seu livro O Futuro Chegou, o senhor citava o Brasil como um exemplo para o resto do mundo. Agora, o Brasil é considerado um contraexemplo, por suas ações durante a pandemia e na questão ambiental. Onde as coisas deram errado?
De Masi - Como disse Tom Jobim: "O Brasil não é para amadores". Apenas amadores podem pensar que o regime de Bolsonaro será duradouro e que o modelo cultural brasileiro pode ser alterado em quatro anos.
Esse modelo, como observei no livro O Futuro Chegou, e como explicaram os grandes antropólogos brasileiros, é feito de mestiçagem, sincretismo, alegria, sensualidade, simpatia, hospitalidade, solidariedade, esperança e beleza.
É, portanto, um modelo de humanismo corporal, precioso para toda a humanidade.
É um imenso patrimônio de livros, pesquisas, reportagens, monumentos, pinturas, filmes, fotografias, além de lugares e objetos, que cobrem o período de muitos séculos densos de obras, descobertas e invenções.
O brasileiro é informal, trabalha em mangas de camisa e sabe atuar em grupos, é fluido em seus processos de tomada de decisão, não tem preconceitos ideológicos, aprende fazendo, tende a combinar trabalho com diversão, presta serviços de forma atenciosa, afável, afetuosa.
Essa identidade contém uma inteligência grande, muito vital, mas também uma fragilidade juvenil, e é essa fragilidade que tornou possível a conquista do poder por um governo bruto e neoliberal como o atual. Um governo que, com suas veias totalitárias, é particularmente capaz de acentuar o infantilismo das massas e neutralizar a maturidade das elites.
BBC News Brasil - Lula é atualmente o primeiro colocado nas pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais do Brasil em 2022. Como o senhor vê um possível retorno dele à Presidência?
De Masi - O papel desempenhado por Lula durante seus dois mandatos presidenciais consistiu em dar voz à classe mais baixa. Em números absolutos, foram criados 20 milhões de empregos durante suas duas presidências, enquanto 40 milhões de brasileiros pobres ingressaram na "classe C".
Uma revolução tão radical em um país tão desigual, por um lado, levou alguns políticos do PT a cair em um delírio de onipotência, entregando-se à corrupção.
Por outro lado, amedrontou o capitalismo internacional que, em resposta a essa revolução, tirou Lula de cena com um duplo golpe, midiático e judiciário.
Lula é hoje uma figura política ainda mais valiosa para a esquerda mundial do que era há vinte anos.
Ele sabe que a doença senil do socialismo está em ter perdido o contato com os pobres, ter renunciado à sua função pedagógica para com aos explorados, ter negligenciado a formação de vanguardas capazes de exercer uma liderança competente nas lutas políticas.
BBC News Brasil - É possível para o Brasil "reinventar seu futuro"?
De Masi - Não só é possível, é certo! Pessoalmente, acredito que, assim que esse infeliz parêntese do governo Bolsonaro acabar, o modelo de vida e sociedade historicamente elaborado pelo Brasil retomará toda sua vitalidade.
Seu sucesso no mundo, é claro, dependerá da capacidade dos brasileiros de se mobilizar, organizar, agir com mais racionalidade sem perder a simpatia, modernizar sem comprometer a sustentabilidade, de ser, talvez, menos improvisadores, sem perder a criatividade.
Depois de ter copiado a Europa por 450 anos e os Estados Unidos por mais de 50 anos, agora que ambos os mitos-modelos estão em profunda crise, o gigante latino-americano está sozinho consigo mesmo, enfrentando seu futuro.
Esta é uma situação inquietante, que pode se dissolver em confusão ou pode gerar o modelo sem precedentes que o mundo precisa.
Acredito firmemente que essa segunda hipótese se realizará e que o Brasil retomará sua jornada de grande democracia, alimentada pelo humanismo e pela criatividade.
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