O polêmico caso de Melissa Lucio, mexicana que pode ser executada nos EUA pela morte da filha de 2 anos
Uma nova revisão das provas poderia evitar a execução, marcada para o dia 27 de abril, mas a decisão depende de uma comissão e do governador do Texas.
02/04/2022 13h49No próximo dia 27 de abril, a mexicana-americana Melissa Lucio pode se tornar a primeira mulher da América Latina a ser executada no Estado do Texas, nos Estados Unidos.
Em 2008, ela foi condenada por um júri do condado de Cameron pelo assassinato de sua filha de dois anos, Mariah Elizabeth Álvarez. O júri chegou à conclusão que Melissa havia "golpeado e torturado" sua filha até a morte.
No entanto, depois de a mulher ter passado 14 anos na cadeia, seus advogados afirmam que uma nova revisão das provas do caso demonstram que Melissa é inocente e que foi pressionada a confessar um crime que não cometeu.
Para suspender a execução ou, pelo menos, adiar por 120 dias, a defesa de Melissa apresentou um pedido de clemência à comissão de perdões e fianças do Estado do Texas.
O pedido, que conta com o apoio de mais de 80 parlamentares, tanto democratas quanto republicanos, e de quatro membros do júri que condenou Melissa, precisaria ser aprovado pela comissão e pelo governador do Texas, Greg Abbott.
Os membros do júri que assinam a solicitação de clemência argumentam ter "sérias preocupações" que informações tenham sido ocultadas no julgamento inicial, e dizem apoiar uma redução da pena.
Vida de 'extrema pobreza'
"Éramos uma grande família e éramos muito unidos", contou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) John Lucio, filho mais velho de Melissa.
"Desde que ocorreu o acidente, houve uma grande divisão entre nós. Simplesmente nada foi mais o mesmo nos últimos 15 anos."
Em 2007, Melissa levava uma vida difícil no condado de Cameron, no Texas, com seu marido, Robert Antonio Álvarez, e seus 12 filhos. Em entrevista à BBC Mundo, Sandra Babcock, uma das advogadas de Melissa, descreveu a situação da família como de "pobreza extrema".
"Cortavam a eletricidade da casa e eles se mudaram umas 26 vezes num período de cinco anos. Inclusive, durante um tempo, o único acesso que tinham a água era através da mangueira dos vizinhos ou da igreja", conta Babcock.
"Viviam em um tipo de pobreza que normalmente não se relaciona a pessoas vivendo nos EUA."
"Um acidente"
Segundo declarações de Melissa à polícia, durante uma dessas mudanças de casa, em 15 de fevereiro de 2007, a menina Mariah, de dois anos, ficou sem supervisão adulta enquanto os pais estavam ocupados. Na época, a família vivia num pequeno apartamento de dois quartos no segundo andar de um edifício localizado na cidade de Harlingen.
Melissa explicou, durante o interrogatório, que quando se deu conta que Mariah não estava no apartamento, saiu em busca dela e a encontrou chorando, ao pé de uma escada, com um pouco de sangue nos dentes de baixo.
Mas, ao não encontrar outros ferimentos aparentes na menina, Melissa continou com as tarefas do dia. Dois dias depois, em 17 de fevereiro, às 19:00, o pai de Mariah chamou o serviço de emergência, porque a menina não estava respirando.
A bebê de dois anos havia sido colocada para dormir na cama dos pais e nunca mais acordou.
A condenação de Melissa
"O que tivemos no momento do julgamento foi um afã de condenar. Os investigadores e a polícia assumiram que Melissa era culpada se baseando na presunção de como uma mãe em luto deve se comportar", explicou a Babcock.
"Não reconheceram que Melissa estava tendo sintomas de transtorno traumático, devido ao fato de ter sido, ao longo da sua vida, vítima de abuso sexual na infância e de violência por parte de seus parceiros."
Momentos depois de saber da morte da filha, Melissa Lucio foi interrogada por cinco agentes da polícia durante mais de cinco horas, sem que pudesse comer, beber ou dormir.
"Eles a provocaram, repreenderam e gritaram com ela até que ela finalmente concordou e cedeu à insistência da polícia de que era culpada pelos danos à sua filha".
"Deveria ter havido uma investigação livre e minuciosa e não foi isso que aconteceu", disse a advogada.
E, apesar da pressão dos agentes, durante o interrogatório, Melissa chegou a negar em mais de 80 ocasiões ter assassinado a sua filha. A acusação por homicídio se baseou na confissão dela ao final do duro interrogatório, no depoimento de um dos agentes que disse estar "certo" que Melissa era culpada, e nos ferimentos encontradas no corpo de Mariah.
O que mudou, diz a advogada de defesa, é que pela primeira vez desde que Melissa foi sentenciada, houve uma revisão científica das evidências. "O que encontramos é que não há fundamentos científicos para a sua condenação."
Revisão das evidências
O caso de Melissa Lucio foi objeto de um documentário de 2020 chamado "O Estado do Texas vs. Melissa". O que a defesa de Melissa fez durante o processo de apelação foi submeter as evidências do caso a um grupo interdisciplinar de especialistas de renome.
Durante essas análises, os especialistas chegaram a conclusões que permitem uma nova leitura dos fatos. Por exemplo, para o reconhecido patologista forense Thomas Young, os ferimentos presentes no corpo de Mariah eram consistentes com uma queda como a descrita por Melisso aos agentes da polícia, já que a menina padecia de um raro transtorno de coagulação.
No pedido de clemência, a defesa de Melissa também criticou fortemente a metodologia utilizada pela especialista forense Norma Jean Farley, que durante o julgamento declarou que a única causa possível da morte de Mariah seria violência física.
"A doutora Farley falhou ao não considerar o histórico médico prévio de Mariah, que incluía dificuldade para andar e quedas documentadas (causadas por um distúrbio), bem como uma lesão cerebral traumática anterior; informações sobre o comportamento de Mariah dias antes de morrer, incluindo sonolência excessiva e perda de apetite, que eram consistentes com traumatismo craniano após uma queda acidental", argumentou a defesa no pedido de clemência.
Segundo o documento, a doutora Farley também teria falhado ao não levar em conta o transtorno de coagulação de Mariah durante seus depoimentos. A BBC Mundo tentou sem sucesso contato com o escritório de Farley.
De acordo com a defesa de Melissa, durante o julgamento, não foi chamado para depor o psicólogo clínico John Pinkerman, que revisou os vídeos de mais de cinco horas do interrogatório da mulher e concluiu que as características psicológicas de Melissa a tornavam propensa a aceitar a culpa devido ao estresse da situação.
E, para Pinkerman, quando Melissa admitiu aos investigadores "ser a responsável", poucas horas após a morte de sua filha, ela parecia estar assumindo a responsabilidade por "todo o padrão de abuso médico e negligência da família", não por ter espancado sua filha até a morte.
O que deu errado
Babcock disse à BBC Mundo que no julgamento de Melissa houve uma infinidade de erros que poderiam ter sido evitados.
"Melissa tinha um advogado nomeado pela Corte, porque ela não podia pagar pela sua própria defesa e esse advogado não estava preparado", diz a advogada atual de Melissa.
"O júri nunca viu as provas exculpatórias, em parte porque o advogado nunca examinou completamente o caso da promotoria e porque os próprios promotores foram preguiçosos e corruptos".
A acusação de corrupção, explica a advogada, se refere ao fato de o promotor responsável pela investigação ter sido condenado a 13 anos de prisão por participação num esquema de subornos no sistema judicial do Texas. No entanto, essa condenação não está relacionada ao caso de Melissa.
"Acho que uma das razões pelas quais tantas pessoas se ofendem é porque você começa a descascar as camadas e percebe que é um caso de incompetência da defesa, é um caso de promotores corruptos, é um caso de injustiça", avalia Babcock.
A desintegração de uma familia
No momento da prisão de sua mãe, John tinha 17 anos.
"Quando tudo isso aconteceu, nossa família se dividiu. Um primo da minha mãe recebeu a guarda dos meus irmãos menores, o que foi bom porque quando eles terminaram o ensino médio, eles se saíram muito bem em San Antonio, Texas", diz John.
"Os maiores, que estavam perto de atingir a maioridade, foram os que perderam. Ser o filho mais velho foi muito difícil, não só pela responsabilidade, mas porque eu queria ver nossa família unida novamente."
Aos 32 anos, John conta que está há pouco mais de um ano fora da prisão e que, por um tempo, tentou organizar sua vida: voltou para a escola, começou a correr maratonas e triatlos.
"Mas quando recebi a data de execução de minha mãe, em 16 de janeiro, tudo começou a dar errado para mim. Tudo se tornou: 'o que posso fazer pela minha mãe?'", conta.
"Foi muito difícil. Eu não conseguia me concentrar. Não corri mais, não treinei mais, não estou cumprindo nenhum dos objetivos que eu estabeleci para este ano. E para voltar à escola, tenho que ver como as coisas vão terminar para a minha mãe."
John organizou várias manifestações pela libertação de Melissa e diz que vai continuar lutando até o último momento. "Não estou aqui para ficar gritando. Só estou aqui para fazer o possível pela minha mãe. Não queria ter que fazer isso, ter que enfrentar isso, mas isso não está afetando só a mim, mas aos meus irmãos também."
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