A profissional que tenta rejuvenescer as palavras cruzadas

Uma das mulheres mais novas a ter seu trabalho publicado no The New York Times, Anna Sechtman usa referências mais jovens e tenta enxergar novos públicos - enquanto tira lições de sua batalha pessoal contra um distúrbio alimentar.


Lucy Wallis - Da BBC News

06/04/2022 07h16
Noa Griffel

Anna Shechtman foi uma das mais jovens criadoras de palavras cruzadas do sexo feminino a ter um desafio publicado no New York Times. Ela continuou abrindo novos caminhos, tornando a cena de palavras cruzadas mais diversificada, mas também teve que lidar com seu próprio desafio com a anorexia ao longo do caminho.

A pista: Grande dama da música

A resposta: Ariana.

Essa é uma das pistas favoritas já elaboradas pela americana Anna Sechtman, jornalista e criadora de palavras cruzadas, de 31 anos.

Segundo ela, a pista reflete mudanças que ela tenta fazer na cena de palavras cruzadas americanas, com uma linguagem que atraia perfis mais variados de leitores (no caso, ela fez um jogo de palavras com o nome da cantora pop Ariana Grande, ícone do público juvenil).

"Existe um grande prazer em solucionar uma palavra cruzada - naquele momento de reconhecimento quando você vê algo que sabe refletido no seu jornal", ela diz.

"Então, para mim, o projeto é trazer esse momento de reconhecimento para mais e mais pessoas que se parecem comigo e consomem o mesmo tipo de produtos culturais que eu."

Anna atualmente trabalha para a revista The New Yorker, e tem PhD em literatura inglesa e estudos de cinema e mídia. Ela se descreve como uma ávida consumidora de reality shows na TV e, em entrevista à BBC, contou como se apaixonou pelo mundo das cruzadinhas - enquanto travava uma dura batalha contra um distúrbio alimentar.

Diversidade

Historicamente, o ambiente de criação de palavras cruzadas sempre foi bastante masculino.

Anna descreve a si mesma como parte de uma pequena geração de criadores que estão trazendo uma diversidade maior de vozes a esse mundo.

"Toda palavra cruzada, de muitas formas, traz a digital do seu criador", ela afirma.

Anna cresceu em Tribeca, no centro da ilha de Manhattan, em Nova York, com seu pai (um advogado), sua mãe (uma historiadora da arte) e sua irmã mais velha.

"Minha família é muito amorosa e também tem bastante do estereótipo da família judia nova-iorquina", prossegue Anna. "Discussões e educação foram certamente priorizadas, e nossas opiniões e ideias sempre tiveram valor desde cedo."

Anna Shechtman
Anna com sua irmã mais velha em 1995

Anna se apaixonou por cruzadinhas na adolescência, quando acompanhou sua mãe ao cinema "indie" Angelika Film Centre, na região do Soho, para assistir ao documentário Palavras Cruzadas (2006).

"O filme realmente te apresenta a membros muito excêntricos do mundo das palavras cruzadas, e eu tive um momento muito estranho de identificação cinematográfica com eles", afirma.

Não é todo mundo que encontra inspiração criativa nas cruzadinhas, ela admite. "Por alguma razão, eu senti o entusiasmo e a excentricidade deles através da tela. Havia algo estrutural sobre a linguagem - era quase como mágica."

Anna passou a criar palavras cruzadas no estilo americano, que é bem peculiar, como ela explica:

"Absolutamente todas as letras precisam estar conectadas a duas palavras do quadro, o que cria um processo de construção bastante masoquista. É diferente, por exemplo, das palavras cruzadas de estilo britânico, na qual a dificuldade é criar charadas para cada palavra".

(Nesses modelos, as pistas são colocadas fora da grade de palavras cruzadas. No Brasil, o estilo mais comum de palavras cruzadas é o direto, em que as pistas estão dentro dos quadradinhos.)

Anna passou a construir suas palavras cruzadas à mão, usando papel quadriculado e "muitos, muitos dicionários", até completar 25 anos.

"É como se as palavras tivessem virado um tipo de equação matemática, na qual você precisa se assegurar de que todas as letras se cruzem na página ao mesmo tempo em que pertençam a palavras reais. Agora, o processo foi digitalizado e comecei a usar softwares de construção de palavras cruzadas, como todo mundo."

Com o software agilizando o processo, Anna sentia que estava "trapaceando", apesar de a elaboração ainda depender, em grande parte, do trabalho humano.

"Ao entender que estava fazendo de mim mesma menos competitiva, comecei a usar o software."

A primeira palavra cruzada que ela já criou era baseada na palavra inglesa "midterm" (usada para se referir, por exemplo, a eleições que ocorram no meio de um mandato ou a exames escolares na metade do ano letivo).

"As respostas temáticas na cruzadinha tinham 'term' no meio delas, então essa era a brincadeira de 'midterm' - por exemplo (as palavras) 'mastermind', 'determined', 'watermelon'. Acho que dei para minha mãe resolver."

Anorexia

Anna não sabia ao certo se sua família entendia plenamente sua paixão.

"Minha irmã mais velha meio que me trollava, achava que eu era nada 'cool'. Ela mudou de opinião", conta. "De muitas formas, acho que (minha família) não entendia bem a mecânica da minha mente, e acho que eu também não. Mas era o que eu gostava."

Ao longo do tempo, criar palavras cruzadas se tornou um "mecanismo para me acalmar", depois que ela desenvolveu anorexia na adolescência.

Na época, seu namorado na universidade, que chegou a ser seu "mais devoto resolvedor de palavras cruzadas", mandou o trabalho de Anna para Will Shortz, o conhecido criador de palavras cruzadas e editor do New York Times.

"Shortz ficou muito entusiasmado", diz Anna, "principalmente porque eu tinha 19 anos. Ele correu para publicar (meu trabalho) porque queria que eu estivesse entre seus construtores adolescentes (de cruzadinhas). Ele foi muito claro: se eu fizesse minhas revisões muito rapidamente, seria a mais jovem mulher a ser publicada nas palavras cruzadas do New York Times."

Noa Griffel
Anna Shechtman foi a segunda mulher mais jovem a ser publicada no Times

Mas como fazia suas cruzadas à mão na época, "não fui tão rápida e me tornei a segunda mulher mais jovem a ser publicada no Times".

Mas enfrentar a anorexia não foi fácil. Ela enxerga o histórico de seu distúrbio alimentar e de seu cruciverbalismo - devoção às palavras cruzadas - como "intimamente enredados um com o outro".

Anna e sua família ficaram bastante temerosos com seu estado de saúde, então ela concordou em iniciar um processo recomendado pelos médicos chamado "refeeding", ou realimentação, de modo muito controlado. No caso dela, isso consistia em fazer três grandes refeições por dia, intercaladas por construir uma palavra cruzada.

"Descobri que havia uma espécie de escape do meu corpo quando eu escrevia as palavras cruzadas. Eu entrava numa espécie de matrix virtual de palavras que me dava uma espécie de barato como compensação", ela explica.

"Entendi que o que eu fazia era difícil, o que me fez sentir meio virtuosa e me permitiu escapar dos desconfortos corporais".

Anna diz que adorava seus estudos, mas por conta do distúrbio alimentar precisou se ausentar durante vários semestres.

"Perdi a confiança da minha família, foi com certeza o pior período da minha vida - não apenas pela minha relação comigo mesma, mas também pela ruptura de relações que eram tão preciosas para mim."

E a principal distorção causada pela anorexia é que Anna sentia que o distúrbio alimentar havia se tornado uma parte essencial de si mesma.

"O mais assustador não era simplesmente (o fato) de eu ganhar peso, mas não saber quem eu seria sem (a anorexia). Eu tinha pensamentos perversos, como achar que não seria inteligente o bastante sem isso, que não teria boas notas, que não conseguiria fazer essa atividade intelectual de nicho que são as palavras cruzadas", explica.

"Todas essas coisas que eu valorizava em mim, eu presumia, erroneamente, ilusoriamente, que eram ligadas ao meu distúrbio alimentar, o que dificultou minha recuperação."

Reabilitação

A segunda palavra cruzada de Anna foi publicada no New York Times depois de ela ser internada em uma clínica de reabilitação para mulheres com distúrbios alimentares. Ela tinha 20 anos.

Enquanto iniciava seu processo de recuperação, ela temia que criar cruzadinhas a fizesse regredir.

As respostas das palavras cruzadas de Anna na revista The New Yorker mostram o estilo dela

"Com as palavras cruzadas, há esse conceito de que você pode controlar essa coisa incontrolável que é a linguagem - o que, de novo, para mim parecia uma tentativa imprudente de controlar o incontrolável que é o corpo humano", diz.

"Então, quando saí da reabilitação, e desfrutei da minha estável - mas precária - recuperação, fiquei com medo de eu ter uma recaída (na anorexia) se voltasse a escrever as palavras cruzadas."

Como tudo na sua vida naquela época, ela teve de "redescobrir e redefinir o significado" das cruzadinhas em sua recuperação. "Assim como o relacionamento com a minha mãe e irmã teve de ser curado, o mesmo aconteceu com a minha relação com palavras cruzadas."

Depois de ter se formado na universidade, ela foi convidada por Will Shortz para ser editora assistente no New York Times.

Os dois eram pessoas muito diferentes, diz Anna. "Ele era um homem de 62 anos criado em uma fazenda de cavalos na área rural (do Estado de) Indiana. Eu tinha 23 anos, tinha sido criada em Tribeca, no baixo Manhattan - nossas referências não poderiam ser mais distintas."

Anna e Will aceitavam ou rejeitavam as palavras cruzadas submetidas ao jornal - no caso das que eram aceitas, eles reescreviam até 90% das pistas. Os dois sentavam juntos e debatiam sobre como definir as palavras.

Ela cita a palavra "bro" (gíria para amigo, que pode ser também traduzida livremente como "mano") como exemplo da diferença de abordagem que os dois tinham a respeito da definição de pistas.

"O que vêm à mente para mim e o que vêm à mente de Will Shortz são definições e referências radicalmente diferentes", diz Anna.

"Para ele - e para a forma como isso foi feito por anos no Times - seria algo (relacionado à palavra "brother", que em inglês significa irmão) como 'parente da mana, irmão da mana'. E a minha pista era algo como 'gíria para jovem homem festeiro e narcisista'."

Anna diz que suas discussões com Shortz são "amigáveis", mas que o foco de ambos sempre era o público - e quem eles imaginavam como sendo a pessoa típica que vai resolver as palavras cruzadas do New York Times.

Anna Shechtman
Anna conta que passou a se ver como uma "forasteira na comunidade de construção de palavras cruzadas"

Enquanto continuava sua recuperação da anorexia, sua trajetória nas palavras cruzadas passou de "privada e terapêutica" para "um exercício mais público e até político". Anna conta que passou a se ver como uma "forasteira na comunidade de construção de palavras cruzadas".

Ela também descobriu que haviam existido pioneiras antes dela, como Margaret Farrar (1897-1984), cuja genialidade nas palavras cruzadas fez dela a primeira editora desse segmento no New York Times.

"Outra mulher que admiro muito é Julia Penelope", diz Anna. "É uma linguista que escrevia suas próprias palavras cruzadas - que ela chamava de cruzadas lésbica-separatistas, cheias de palavras como 'herstory' e 'womyn', escrita com y (respectivamente, 'históriadela' e 'mulher'). Ela não conseguiu publicar suas palavras cruzadas no New York Times, então publicou de modo autônomo uma coleção de cruzadas que eu adoro."

Agora, na dianteira de uma nova geração mais demograficamente diversificada de construtores, ela se sente também parte dessa longa linhagem de mulheres cruciverbalistas.


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