Teste genético: quando é indicado e quais cuidados você deve ter, segundo médicos
Cresce no Brasil a oferta de exames que avaliam o DNA e trazem informações sobre o risco de desenvolver doenças, a ancestralidade e supostamente até a dieta e o tipo de exercício ideais para cada pessoa. Saiba quando esses recursos são válidos — e quando os resultados ainda não são confiáveis.
13/04/2022 09h35Imagina você tirar um pouco de sangue ou de saliva e descobrir de onde vieram os seus antepassados, qual o tipo de exercício físico indicado para seu corpo, a alimentação mais adequada para sua saúde e o risco de desenvolver milhares de doenças.
Essa é a promessa das empresas que oferecem os testes genéticos, um mercado em franca expansão no Brasil e no mundo e que oferece preços cada vez mais competitivos.
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A maior disponibilidade dessas ferramentas está relacionada a uma enorme evolução tecnológica. Para ter ideia, o Projeto Genoma Humano, finalizado em 2003, levou 13 anos para ser concluído, custou cerca de 3 bilhões de dólares e demandou o uso de 240 mil sequenciadores genéticos, espalhados por 20 centros de pesquisa em várias partes do mundo. Passadas pouco menos de duas décadas, hoje em dia é possível fazer a análise do DNA por algo em torno de mil a 3 mil reais, em 24 horas e com apenas uma máquina.
E os avanços não se limitam ao custo, aos equipamentos e ao tempo despendido: a compreensão das diferentes sequências genéticas e o que elas podem significar na prática evoluiu muito nesses 20 anos.
Mas será que todos esses testes funcionam de verdade e podem trazer alguma informação relevante? Em que casos eles são realmente indicados?
De acordo com geneticistas ouvidos pela BBC News Brasil, algumas dessas opções fazem realmente a diferença. Outros, porém, ainda não trazem informações confiáveis e validadas cientificamente, como você confere a seguir.
Testes de ancestralidade
Uma das opções mais populares e acessíveis no mercado, eles têm a premissa básica de dizer de onde vieram os seus antepassados.
Na prática, esse teste compara partes do seu DNA com um banco de dados enorme e tenta encontrar traços genéticos em comum com alguns grupos típicos de regiões específicas do planeta.
Desse modo, o resultado revela com um certo grau de confiança a sua ancestralidade — dizendo, por exemplo, que seu material genético vem 20% da África Central, 15% da África Subsaariana, 10% da Península Ibérica e assim por diante.
Embora a qualidade desse tipo de exame tenha melhorado nos últimos anos, é importante lembrar que eles não são 100% precisos. Podem acontecer algumas distorções nos resultados, especialmente se a sua família vem de uma região com poucas informações genéticas naquele banco de dados utilizado para fazer a comparação.
"Infelizmente, a maior parte dos dados genômicos são gerados em países desenvolvidos da América do Norte e da Europa", lamenta o médico Roberto Giugliani, professor titular de genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"Isso é algo que ainda precisamos avançar: ampliar a disponibilidade de sequenciamentos genéticos de outras partes do mundo", complementa o especialista, que também é cofundador da Casa dos Raros, um centro de treinamento e educação sobre doenças raras.
Os especialistas sugerem, portanto, que os testes genéticos de ancestralidade sejam interpretados como algo informativo, recreacional e uma forma de buscar autoconhecimento. Mas os resultados não devem ser levados a ferro e fogo.
Dieta, exercício e pele
Ainda na seara dos testes recreativos, é comum ver laboratórios oferecendo exames que, supostamente, ajudariam a indicar a alimentação ou o tipo de atividade física mais adequados de acordo com os seus genes.
Alguns vão além e disponibilizam uma análise da pele do paciente, indicando possíveis predisposições a doenças e indicações de tratamentos dermatológicos.
Nesse contexto, os médicos pedem bastante cautela: ainda não conhecemos nosso genoma suficientemente bem para chegar a esse tipo de conclusão tão ampla.
"Muitas vezes, esses testes levam em conta um estudo pequeno que foi feito na população do Iêmen, em que os pesquisadores observaram uma maior propensão a gostar de brócolis nos indivíduos com determinadas características genéticas", hipotetiza a médica Maria Isabel Achatz, coordenadora da Unidade de Oncogenética do Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista.
Ainda que investigações do tipo sejam válidas, não é adequado extrapolar os resultados como se fossem verdades absolutas para, literalmente, todo o mundo.
"Algumas empresas constroem painéis imensos com informações desse tipo, e muitas vezes é impossível checar a fonte de todas as conclusões que aparecem nesses laudos", continua a geneticista.
Por ora, a recomendação é não encarar essa opção de teste genético sobre alimentação ou atividade física como algo sério e que serve de base para mudar hábitos, comportamentos e o estilo de vida.
Até porque as orientações básicas de saúde são relativamente iguais para todo mundo: é importante ter uma dieta variada e equilibrada, rica em frutas, verduras e legumes e pobre em alimentos ultraprocessados, e fazer pelo menos 30 minutos de atividade física moderada ou intensa todos os dias.
Doenças mais comuns
A discussão sobre a necessidade de fazer testes genéticos se estende a mais um campo da saúde humana: será que vale se submeter a um exame desses para descobrir o risco de desenvolver as enfermidades mais frequentes, como pressão alta, diabetes ou Alzheimer?
Na maioria das vezes, a resposta dos especialistas para essa pergunta será um alto e sonoro "não".
A médica Mayana Zatz, professora titular de genética da Universidade de São Paulo (USP), ensina que essas doenças costumam ter uma herança genética complexa e estão relacionadas a diversas características do DNA.
"Ou seja: falamos de quadros relacionados a diversos genes e para os quais há uma influência muito grande de fatores ambientais e do comportamento do próprio indivíduo", acrescenta Zatz, que também coordena o Centro de Estudos em Genoma Humano e Células-Tronco da USP.
Em termos práticos, um exame desses pode até estimar, com um alto grau de incerteza, uma propensão genética maior a pressão alta, por exemplo. Mas o problema tende a não aparecer (ou ser mais brando) se a pessoa faz atividade física, não fuma e tem uma alimentação equilibrada.
"E vamos supor que eu faça um teste do tipo e apareça que tenho risco aumentado de diabetes. Qual vai ser a recomendação do médico? Comer de forma saudável, fazer atividade física, não ganhar peso… Veja bem, a receita continua igual para todo mundo", argumenta a geneticista.
Achatz lembra a história de um paciente que chegou no consultório dela dizendo que havia descoberto, por meio de um teste genético, que tinha 30% de risco de Alzheimer no futuro.
"A pessoa sentou na minha frente com os olhos inchados de tanto chorar. Ela me disse que, quando recebeu a notícia, teve vontade de morrer", relata a médica.
"A minha recomendação foi clara: pegue o laudo, rasgue e jogue no lixo."
Um dos grandes problemas nesses casos, apontam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é que os resultados sobre a propensão de desenvolver uma enfermidade ou outra são fornecidos pela internet, de forma impessoal e sem nenhum tipo de orientação.
O aconselhamento genético, feito por alguém que se especializou no tema, é fundamental para interpretar aquele mar de informações e colocar em perspectiva o que o teste encontrou escrito no DNA.
"Muitas vezes, o indivíduo vê aqueles 30% de risco de Alzheimer e nem se lembra dos outros 70% de chance de não desenvolver a doença", completa Achatz.
Câncer
Não é exagero dizer que a oncologia é a área da medicina que mais se beneficiou da genética até agora.
"Os testes ajudam, por exemplo, a identificar quem tem um perfil genético que predispõe a determinados tipos de câncer", cita Giugliani.
"Com isso, o monitoramento da doença fica muito mais personalizado e ajuda a identificar os casos logo no início, quando há mais chances de sucesso no tratamento", diz o médico. Em algumas situações, inclusive, é possível agir até antes de as células cancerosas aparecerem.
O exemplo mais famoso aqui é o da Angelina Jolie. Em 2013, a atriz americana anunciou que tinha feito uma cirurgia preventiva para a retirada das mamas, após descobrir que portava mutações nos genes BRCA 1 e 2, que estão diretamente relacionadas a tumores nessa parte do corpo.
Que fique claro: um teste desse tipo não está indicado para todas as mulheres e deve passar necessariamente por uma avaliação médica. Jolie mesma só o fez porque tinha histórico de câncer de mama na família, um dos fatores que sugerem a necessidade de vasculhar o DNA atrás desse tipo de informação. A recomendação, portanto, varia de caso a caso.
E olha que os avanços da genética não se limitam à detecção precoce do câncer. Hoje em dia, esses exames ajudam a acompanhar toda a família e permitem determinar o melhor tratamento para cada paciente.
"Após o diagnóstico da doença, o resultado de uma análise genética, quando há indicação para fazê-la, tem o potencial de modificar a estratégia terapêutica que será adotada", reforça Achatz.
Vamos supor que os médicos encontram uma mutação X num paciente com câncer no pulmão. Atualmente, existem remédios específicos, que só funcionam quando essa alteração está presente no genoma. Já em um segundo caso, que apresenta a mutação Y, outro medicamento será mais adequado.
Doenças monogênicas
Por fim, não podemos nos esquecer das enfermidades classificadas como monogênicas ou mendelianas.
"Elas são causadas por mutações em um único gene, que faz a pessoa desenvolver aquela condição", ensina Zatz.
Estima-se que 6 mil doenças se encaixam nessa descrição, como é o caso de anemia falciforme, fibrose cística e distrofia muscular de Duchenne.
E mesmo nesses casos, em que os testes são bem confiáveis e fecham o diagnóstico de uma enfermidade, a indicação para fazê-los é restrita.
"Geralmente, só recomendamos a realização de exames do tipo quando a pessoa sabe que há histórico dessas doenças na família", sugere Zatz.
Nesses casos, uma análise do DNA seria bastante benéfica. Um casal que está pensando em conceber um filho e tem histórico de doenças monogênicas em parentes próximos, por exemplo, pode fazer exames para analisar a presença de determinadas mutações, que têm probabilidade de passar para as gerações futuras.
Caso essas mutações sejam realmente detectadas, o casal pode optar por uma inseminação artificial e pela análise genética dos embriões.
Assim, só serão implantados no útero da mulher aqueles embriões que não apresentam as mutações. Isso descarta completamente o risco de que o futuro bebê tenha a determinada doença monogênica relativamente comum naquela família.
"Esse tipo de teste ainda é bem caro, mas precisamos considerar o impacto de saúde, emocional e financeiro que uma doença dessas tem na vida de uma criança e de todos ao redor", analisa Zatz.
"Para ter ideia, existe um grupo de doenças chamadas de Atrofia Muscular Espinhal, ou AME. Hoje, só o tratamento desse quadro custa 2 milhões de dólares. Imagina prevenir o nascimento de uma criança com essa condição?", questiona a geneticista.
Isso, aliás, nos leva a uma outra discussão: será que vale a pena saber que você tem uma enfermidade grave, para a qual ainda não existe nenhuma terapia?
"Muitas vezes, o diagnóstico encerra a busca por uma explicação para os sintomas que a pessoa apresenta há anos. Por mais difícil que seja receber uma notícia dessas, saber da doença pode ajudar o indivíduo a virar a página e seguir em frente", opina Giugliani.
"E precisamos lembrar que sempre existe algo que pode ser feito. A medicina não trata a doença, mas, sim, o paciente", complementa o médico.
Mas e quando o sujeito ainda não apresenta uma doença grave e sem remédios disponíveis, mas carrega as mutações que levarão ao desenvolvimento do quadro mais pra frente, a partir dos 50 ou 60 anos de vida?
"O consenso é não testar crianças para doenças que só vão aparecer na fase adulta e para as quais não há tratamento", pensa Zatz.
"Quando esse teste é feito ainda na infância, tiramos o direito de o indivíduo decidir se quer saber ou não daquilo quando for adulto", diz.
A geneticista avalia que, na maioria das vezes, as pessoas preferem não conhecer aquela informação, que pode ser fonte de aflição constante.
"Outro dia estava dando aula na Faculdade de Medicina da USP e perguntei quantos dos jovens alunos gostariam de saber se tinham um risco genético aumentado de desenvolver um quadro debilitante no final da vida. Metade da turma levantou a mão", conta.
"Na sequência, falei que todos aqueles que toparam estavam convidados a comparecer no meu laboratório para fazer esse teste."
"Até agora, nenhum deles apareceu por lá", finaliza a geneticista.
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