Páscoa: como eram os alimentos da Santa Ceia
O pão era aquela que chamavam de 'ázimo', feito apenas com farinha e água. Quanto ao vinho, poucos se arriscam a descrever como era a bebida consumida por Jesus e seus seguidores.
14/04/2022 18h21De acordo com os relatos bíblicos, Jesus sabia que seria morto quando celebrou a Páscoa com seus seguidores.
"Bem sabeis que daqui a dois dias é a Páscoa; e o filho do homem será entregue para ser crucificado", diz o Evangelho de Mateus.
"E, no primeiro dia da festa dos pães ázimos, chegaram os discípulos junto de Jesus, dizendo: Onde queres que façamos os preparativos para comeres a páscoa? E ele disse: Ide à cidade, a um certo homem, e dizei-lhe: O mestre diz: o meu tempo está próximo; em tua casa celebrarei a páscoa com os meus discípulos", prossegue o texto.
"E os discípulos fizeram como Jesus lhe ordenara, e preparam a Páscoa. E, chegada a tarde, assentou-se à mesa com os doze."
Então, Jesus teria repartido o pão e o vinho, dito que o que ali estavam era o seu corpo e o seu sangue, recomendado que seus seguidores prosseguissem fazendo isso "em memória de mim".
Historicamente, o que podemos supor que Jesus tenha comido e bebido com seus amigos nesse jantar eternizado no imaginário coletivo?
A Bíblia fala em pão ázimo, um tipo de pão assado sem fermento, feito somente com farinha e água. Na época, era comum que se misturassem o trigo moído com outros cereais, como aveia, cevada e centeio, o que houvesse disponível.
De acordo com a tradição, se a Páscoa é a memória da fuga dos antigos judeus do Antigo Egito, o pão ázimo se tornou obrigatório porque era a refeição precária que eles podiam ter ao longo do trajeto. Considerando ser Jesus um judeu pobre, assim como seus discípulos, é de se supor também que tais ingredientes fossem o que havia disponível.
"Na mesa da Páscoa, havia pão, o pão ázimo, e vinho. Não para beber de cair, porque imagina-se que não era uma mesa de grandes farturas", diz à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, autor de Jesus de Nazaré: Uma Outra História e professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Não era uma mesa farta no sentido de sobrar, mas havia o trivial. Pão, o vinho, algumas poucas frutas. Era a comemoração da Páscoa. Na mesa da imensa maioria dos judeus era o trivial. Apenas a elite tinha mais. Indivíduos como Jesus e sua trupe, não", acrescenta.
"De qualquer maneira, o vinho estava presente. Não um vinho importado, mas o vinho de produção local, de baixa qualidade."
As frutas que compunham a mesa de Jesus provavelmente eram romãs, tâmaras e uvas.
Vinho ancestral
Se há um consenso de que o vinho foi inventado há cerca de 6 mil anos, poucos arriscam determinar como era o vinho bebido por Jesus e seus seguidores.
Pesquisas indicam que, naquela época, a bebida — de má qualidade e sem padrão consistente — era misturada com ervas aromáticas, mel e frutas. Isso servia para várias coisas. Primeiro, para dar mais frescor. Também para disfarçar o gosto não muito palatável. Por fim, fazer diminuir o gosto avinagrado e oxidado de um vinho que não era conservado adequadamente.
Em seu livro Ancient Wine: The Search for the Origins of Viniculture, o arqueólogo Patrick Edward McGovern, pesquisador da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, explica que era hábito misturar à bebida alcaparras, açafrão, pimenta e toda a sorte de especiarias.
Na hora de beber, misturava-se com água.
Como não havia garrafas nem tonéis adequados para preservar o vinho, a ideia era guardar as uvas da colheita para que vinhos fossem feitos ao longo do ano.
Isso significa que na maior parte do tempo eram uvas secas — e não frescas — que acabavam utilizadas. Assim, é de se supor que os vinhos fossem semelhantes àqueles feitos hoje com passas, que resultam em bebidas de álcool mais intenso, e sabor entre o doce e o amargo.
O clima da região, quente e seco, garante a produção de uvas com mais açúcar, o que significa vinhos com maior teor alcoólico.
Na época de Jesus, beber vinho era também questão de saneamento básico. Como não havia tratamento de água, a bebida alcóolica era melhor — até para crianças — para evitar problemas de contaminação.
Com a expansão do império romano, foi incentivada a proliferação de vinhedos. A ideia era garantir o suprimento aos soldados, que atuavam em todas as possessões.
Não há um consenso entre pesquisadores sobre qual era o tipo da uva que se plantava na região de Jerusalém — acredita-se que mudas eram levadas de um ponto a outro e acabavam ficando aquelas que mais se adaptavam a cada clima e solo.
O mais provável é que a uva daquela região era uma variedade ancestral daquela que hoje é chamada de syrah.
'Pão nosso de cada dia'
No livro Seis Mil Anos de Pão: A Civilização Humana Através de Seu Principal Alimento, o pesquisador Heinrich Eduard Jacob aborda em profundidade como Jesus, e posteriormente o cristianismo, se apoderou do campo semântico do pão em seus ensinamentos.
Da oração do Pai Nosso aos relatos dos milagres, passando por parábolas e, claro, a Santa Ceia.
Técnico da seleção brasileira de panificação e gerente do Inspiration Center da multinacional Puratos, o padeiro alemão Johannes Roos acredita que no dia a dia Jesus consumisse pão fermentado — e não somente o ázimo mencionado na Bíblia.
"O pão comido naquele período era algo integral, com uma mistura de farinhas de vários cereais, trigo, sorgo, espelta… Fermentado naturalmente, de forma lenta", conta o padeiro, em entrevista à BBC News Brasil.
"Acho que seria um pão mais escuro, de moagem mais grossa."
Roos foi além. Motivado pela reportagem, acabou criando uma receita de pão contemporâneo que seria uma releitura atual do pão consumido na Jerusalém de 2 mil anos atrás.
"É a receita do pão que eu faria para Jesus na Santa Ceia", comenta ele.
O padeiro utilizaria 400 gramas de farinha de trigo, 200 gramas de farinha de centeio, 100 gramas de farinha de espelta, 100 gramas de farinha de sorgo, 200 gramas de farinha de trigo integral, 200 gramas de fermentação natural, 22 gramas de sal do Mar Morto, 30 gramas de semente de gergelim, 30 gramas de semente de girassol, 30 gramas de semente de linhaça, 30 gramas de semente de abóbora e 550 gramas de água.
Para fazer, "amassaria lentamente todos os ingredientes, menos os grãos, até que a massa ficasse homogênea por completo".
"Então deixaria descansar por 2 horas, sovaria por mais 15 minutos e deixaria descansar por outras 2 horas. Dividiria em tamanhos de 1,2 quilo cada pão, modelaria e deixaria fermentar por 16 horas", explica.
"Assaria em forno a lenha com madeiras aromáticas, por 50 minutos."
"Antes, limparia o forno com alecrim do mato, que é um planta que deixa um aroma incrível quando utilizada para varrer", diz ainda ele.
Sacramento
Entre teólogos e pesquisadores do cristianismo não há dúvidas de que o pão e vinho, carregados de significados religiosos, foram os protagonistas daquela última refeição.
"Estamos falando da comemoração da Páscoa acontecendo. É uma celebração típica de um judeu, uma festa estabelecida desde a antiguidade, para marcar a saída apressada do Egito, quando na fuga eles se alimentaram de ervas amargas, repartiram o pão, comeram um cordeiro que foi sacrificado", pontua à BBC News Brasil o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
"Essa festa rememora um momento de libertação. Os pães ázimos, sem fermento, rememoram essa saída, essa fuga, porque eram pães de pobre, da pessoa com pressa e poucos recursos", completa ele.
"O vinho era uma bebida comum, que fazia parte da alimentação e dos costumes, dos hábitos de todo mundo."
Moraes afirma que, mesmo que alguns moralistas religiosos abstêmios se incomodem, é fato histórico que Jesus bebia vinho com frequência.
"Isso deve ser entendido sem nenhum tipo de escândalo. Em algum momento, Jesus acaba sendo acusado de beberrão, de acolher prostitutas, de participar de festas, de andar com pessoas simples e pobres… Jesus era um homem festeiro e o último momento dele é um momento em que ele está como um judeu típico celebrando a Páscoa", contextualiza o historiador.
O importante, entende o pesquisador, é como ele acaba ressignificando o gesto — e, assim, fundando o cristianismo.
"Ele modificou o processo [da Páscoa]. Aproveitou aquela situação toda para ressignificar a ceia, transformando aquela reunião de um grupo de judeus, instituindo um novo sacramento. E é exatamente isso que fundamenta a igreja: a eucaristia, a Santa Ceia", comenta.
"De uma festa judaica da Páscoa, ele instituiu um novo sacramento. Ressignificou o pão e o vinho", acrescenta.
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