A história do bebê venezuelano morto por um disparo da guarda costeira em travessia para Trinidad e Tobago

Yermi Santoyo pagou a um coiote para levar sua família para fora da Venezuela em um barco. Porém, a viagem terminou em tragédia.


Valentina Oropeza Colmenares - @orovalenti - BBC News Mundo

24/04/2022 14h52
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A Guarda Costeira de Trinidad parou um barco da Venezuela em 5 de fevereiro de 2022.

O telefone tocou às 3h da manhã. O venezuelano Yermi Santoyo acordou e olhou para a tela. Era um número desconhecido. "Você é o marido de Darielvis?", perguntou um homem em espanhol, depois de traduzir o que outro havia dito em inglês, ao fundo. "Ela está ferida", disse.

"Ferida? Ele caiu no rio?", perguntou. "Não, não. Você tem que vir", respondeu o outro, no telefone. "Mas o que houve?".

"Se você quer descobrir, tem que vir aqui para que eu possa te dar uma força", respondeu o homem.

Ele desligou. Yermi deu um pulo. Dar força? Ele sentiu sua cabeça girar: não tinha ideia do que poderia fazer.

Yermi havia falado pela última vez com sua companheira, Darielvis Sarabia, dois dias antes, quando ela entrou em um barco que levaria ela e seus dois filhos de Tucupita, no leste da Venezuela, para Trinidad e Tobago.

Tucupita é a capital do Delta Amacuro, uma das províncias venezuelanas mais próximas da costa de Trinidad, e um dos principais pontos de partida para os venezuelanos que fogem do país de barco para se refugiar na ex-colônia britânica.

Seis milhões de pessoas fugiram ou emigraram da Venezuela nos últimos anos, um êxodo que a Agência das Nações Unidas para Refugiados define como "uma das maiores crises de deslocamento do mundo".

Os migrantes venezuelanos navegam pelos afluentes do Orinoco, que atravessam a geografia do Delta Amacuro e deságuam no Mar do Caribe. Por causa disso, Yermi temia que sua esposa tivesse caído no rio.

'O que aconteceu, meu amor?'

Yermi ligou para um amigo que morava perto de sua casa. Eles pegaram um ônibus para o Hospital de Sangre Grande, no nordeste de Trinidad. Chegaram pouco antes do amanhecer, depois de duas horas e meia de viagem.

Darielvis estava na sala de emergência, deitada em uma maca, com o ombro esquerdo enfaixado e as roupas manchadas de sangue. Dois policiais a vigiavam.

"O que aconteceu, meu amor?", perguntou Yermi, com medo da resposta. "Perdemos a criança", respondeu ela, tremendo.

Ela e os filhos deixaram a Venezuela em 4 de fevereiro de 2022, uma sexta-feira, quando o governo do país completou 30 anos do golpe de Estado liderado pelo ex-presidente Hugo Chávez - marco do chavismo como movimento político.

O casal tinha dois filhos: Danna, de dois anos, e Yaelvis, de 1.

A mãe e os filhos navegaram pelos rios do Delta Amacuro e esperaram até a noite de sábado para zarpar. Era mais fácil fugir das patrulhas de Trinidad na escuridão da noite.

No entanto, um navio da guarda costeira interceptou o barco quando se aproximava da costa de Trinidad na noite de sábado, 5 de fevereiro.

Darielvis disse ao marido que a criança estava sentada em seu colo. Os policiais acenderam refletores e mandaram o barco parar, mas o motorista ficou nervoso e tentou retornar.

Tiros foram disparados.

Ela cobriu o menino com seu corpo para protegê-lo, mas uma bala atravessou seu ombro esquerdo e atingiu Yaelvis.

"Sua cabecinha explodiu. Eu vi em minhas mãos", disse ela ao marido.

A tripulação gritou que havia mulheres e crianças no barco e o tiroteio parou.

Os guardas separaram Darielvis do corpo do filho para levá-la ao hospital.

Danna, a mais velha, ficou com o resto da tripulação do barco.

Defesa própria

Facebook de Darielvis Sarabia
Darielvis Sarabia viajou com seu filho Yaelvis da Venezuela para Trinidad

Um navio de 720 toneladas e 59 metros de comprimento estava patrulhando a costa sul de Trinidad e Tobago quando detectou uma embarcação que havia cruzado a fronteira em águas marítimas venezuelanas, informou a Guarda Costeira de Trinidad em comunicado no domingo, 6 de fevereiro.

As autoridades do navio enviaram um barco para interceptar a lancha.

Agentes chamaram os integrantes do barco por megafones, tocaram a buzina, apontaram o holofote e lançaram sinalizadores para forçar a embarcação a parar, segundo a entidade. No entanto, a guarda afirma que o barco insistiu em "fugir".

"O esforço de abalroamento da embarcação suspeita, que era maior do que o navio, fez com que os tripulantes temessem por suas vidas e, em legítima defesa, dispararam contra os motores da embarcação suspeita", continuou a guarda.

Quando o barco parou, funcionários da Guarda Costeira de Trinidad descobriram que havia "migrantes ilegais a bordo", que não foram vistos porque "permaneceram escondidos".

Eles encontraram um "migrante ilegal adulto" que estava sangrando e segurando uma criança. "Infelizmente, o bebê não respondeu", explicou a Guarda Costeira.

Eram Darielvis e seu filho Yaelvis.

Rezar pelo bebê

Dias depois, um pescador de Trinidad e Tobago desmentiu a versão da guarda costeira em um comunicado à imprensa do país, no qual pediu para permanecer anônimo.

O pescador estava viajando com outras duas pessoas em um barco na região de Moruga, ao sul de Trinidad, quando avistaram um barco com problemas.

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Os venezuelanos que fogem para Trinidad pelo Delta Amacuro viajam pelos afluentes do rio Orinoco

A tripulação entrou no veículo dos pescadores para chegar à costa, mas foi interceptada antes de chegar à terra firme.

"Vimos este barco, não tinha luzes nem nada. Vimos um sinalizador. Não sabíamos se eram bandidos ou a guarda costeira. Com o primeiro sinalizador que lançaram, ouvimos vários tiros", disse ele ao jornal Trinidadian Guardian.

"Eles lançaram sinalizador e deram tiros. Após o segundo sinalizador, eles enviaram um terceiro sinalizador onde acenderam uma luz em seu barco que dizia Guarda Costeira Parada."

Segundo ele, uma mulher ferida se levantou. "Vi um grande buraco na cabeça do bebê. Ela estava chorando. Ela estava ensanguentada", acrescentou, referindo-se a Darielvis.

Os oficiais da Guarda Costeira usavam balaclavas, disse o pescador. Eles se aproximaram do barco em dois veículos menores e miraram nos imigrantes, diz. "Eles estavam xingando e exigindo drogas e armas."

Obrigaram os pescadores a permanecerem no barco com o corpo da criança, enquanto os imigrantes eram transferidos para os barcos oficiais.

"Então eles me chamaram para ir até a frente pegar o bebê e orar por ele. Eu fiz o que eles disseram porque estava com muito medo", disse o pescador aos jornalistas.

'Por que você teve que atirar?'

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Muitos venezuelanos tentam a rota caribenha para Trinidad e Tobago para escapar das condições precárias de seu país.

A ex-primeira-ministra e líder da oposição de Trinidad, Kamla Persad-Bissessar, disse que sentiu uma "dor dilacerante" ao saber que a guarda costeira "atirou em um barco de imigrantes, matando um bebê".

"A guarda diz que eles vieram para atacá-la. Eles poderiam ter feito uma ação evasiva. Por que tiveram que atirar? Foi isso que chamaram de força razoável?", questionou.

O primeiro-ministro de Trinidad, Keith Rowley, respondeu em um post no Facebook que a patrulha de fronteira tentou "parar um navio que se recusou a responder e agiu de forma agressiva em conformidade com ordens legais, razoáveis ​​e profissionais sob a lei e o protocolo internacionais".

E finalizou, em caixa alta, sobre a morte de Yaelvis: "FOI UM ACIDENTE!".

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, não recebeu resposta ao pedido de entrevista com porta-vozes da Guarda Costeira ou do Ministério da Segurança Nacional de Trinidad e Tobago.

A advogada Nafeesa Mohammed, especializada em direitos da criança, acredita que a guarda agiu sem levar em conta a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados ou a Convenção sobre os Direitos da Criança.

"Refugiados e requerentes de asilo são vítimas e precisam de proteção, não de perseguição", disse ela.

"A Guarda Costeira está encarregada de proteger nossas fronteiras e conduzir seus assuntos de maneira militar. Eles não respeitam os direitos humanos ou considerações humanitárias", afirmou.

O governo venezuelano pediu uma investigação sobre a morte de Yaelvis.

'Pai'

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Um pescador de Trinidad negou a versão da Guarda Costeira para a morte do bebê

O casal e os filhos moravam na casa da avó de Darielvis, que cuidou dela desde os 15 anos, quando sua mãe morreu de câncer.

Agora, a avó tem 80 anos e anda de cadeira de rodas.

Em junho de 2021, Darielvis e as crianças estavam tão magras que Yermi decidiu migrar para Trinidad para procurar trabalho com o objetivo de mandar dinheiro para casa, na Venezuela.

Ele chegou a vender o celular para receber os 200 dólares - o dinheiro foi usado para custear a viagem de Tucupita.

Ao contrário do restante de sua família, Yermi conseguiu chegar à praia de Morne Diablo, ao sul de Trinidad, sem ser detectado.

Ele trabalhou por oito meses em Trinidad como diarista em fazendas.

Ligava para as crianças todos os dias, antes de sair de manhã, na hora do almoço e antes de dormir. Queria evitar que os filhos o esquecessem.

"Pai", respondeu Yaelvis quando viu Yermi por videochamada pela última vez.

Quando se sentiu confiante o suficiente para pedir um favor, Yermi conseguiu um empréstimo de seu chefe de 2.000 dólares de Trinidad (cerca de R$ 1.300) para colocar sua esposa e filhos naquele barco.

Os coiotes que transportam venezuelanos do Delta Amacuro evitam especificar onde vão desembarcar. As manobras para evitar "o litoral" os impedem de saber em qual parte da ilha os passageiros poderão ficar.

Quando chegam à praia, não param na margem. Ordenam aos passageiros que saltem para a água e desembarquem, embora muitos não saibam nadar.

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'Pedimos aos nossos vizinhos venezuelanos que se abstenham de arriscar a vida de outros no contrabando de migrantes', disse o primeiro-ministro de Trinidad e Tobago, Keith Rowley

O retorno de Dana

"E Dana, onde ela está?", perguntou Yermi à esposa na sala de emergência do hospital.

"Eles a levaram. Encontre minha garota", ela respondeu.

Os policiais disseram a Yermi que ele poderia visitar sua esposa todos os dias entre 16h e 17h, mas nos primeiros três dias ele não teve permissão para vê-la.

Funcionários da embaixada venezuelana o acompanharam para procurar sua filha Danna. No terceiro dia de buscas, eles a encontraram no heliporto de Chaguaramas, uma instalação militar onde são detidas as pessoas que entram ilegalmente em Trinidad.

Yermi desceu do carro e tentou se aproximar do prédio principal de Chaguaramas, mas dois guardas bloquearam o caminho.

Danna apareceu segurando a mão de um estranho. Quando a entregaram para Yermi, a menina começou a chorar e não o reconheceu. Ele a abraçou e a lembrou que ele era seu pai. Ele disse que tudo ficaria bem, que ficariam juntos para sempre.

A menina teve diarreia nos dias seguintes. Yermi se perguntou se ela havia bebido água contaminada. Ao amanhecer ela gritava e chorava, acordando assustada com pesadelos.

Ele parou de trabalhar enquanto a esposa estava no hospital. Levava pelo menos duas horas para ir de casa ao centro médico e outras duas para voltar, sempre acompanhado por Danna.

Yermi sentiu que a esposa evitava chorar na frente dele. Ela era "forte", assim como a mãe de Darielvis quando recebeu tratamento contra o câncer.

Embora os policiais tenham dito a Yermi que ele poderia acompanhar Darielvis por pelo menos uma hora por dia, eles não permitiram que ele ficasse por mais de 30 minutos.

Os agentes autorizaram Danna a ver sua mãe. Ela conseguiu beijá-la e dizer que a amava, mas a garota não demonstrou muito interesse pelo reencontro, como se não a reconhecesse.

Darielvis ficou nove dias internada, até passar por uma cirurgia no ombro.

Como ela parecia magra e apática, Yermi pediu para falar com um médico. Queria saber se seu sangue estava normal, para confirmar que seu corpo aguentaria a cirurgia. No entanto, ninguém respondeu.

Ela se recuperou da operação e foi liberada após o velório do filho.

Do grupo que viajou naquele barco, Darielvis e sua filha foram os únicos que receberam autorização do governo de Trinidad para permanecer na ilha.

Os outros foram deportados de barco para Güiria, cidade venezuelana localizada a 516 quilômetros ao norte de Tucupita.

O refúgio

O primeiro-ministro de Trinidad indicou que a ilha, de 1,39 milhão de habitantes, não tem capacidade para receber requerentes de refúgio da Venezuela, país de 28 milhões de pessoas.

"Se você vai solicitar asilo em Trinidad e Tobago, ou em qualquer lugar do mundo, tem que mostrar que está pessoalmente em risco, sob ataque por causa de sua raça, religião, política ou qualquer outra coisa", declarou Rowley em dezembro de 2020.

"A ambição por uma vida melhor por meio de mudanças econômicas não se aplica ao asilo em nenhum lugar do mundo", acrescentou.

A Venezuela perdeu quatro quintos de sua economia a partir de 2014, a contração econômica mais severa da história moderna do Ocidente.

Nesse cenário, Delta Amacuro aparece como um dos estados mais pobres da Venezuela.

Ninguém se atreveu a contar à avó de Darielvis o que aconteceu com o bisneto. Ela ainda espera que a neta e seus filhos liguem para contar como foi a viagem a Trinidad.


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