Fundação Padre Anchieta

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Quando eu cresci, ler quadrinhos era coisa de pouca gente. Ninguém lia nada, exceto as crianças que se divertiam com a Turma da Mônica. Na minha classe, sempre fui o único a curtir Marvel e DC. Eu também queria ler quadrinhos europeus ou mangás, mas não conseguia – os primeiros eram muito caros e os segundos, difíceis de achar. Ou seja, eu era um estranho (acho que hoje em dia o nome é “nerd”) que não tinha com quem conversar sobre minha grande paixão, as HQs.

Mas aí veio John Constantine.

Se você não conhece o mago britânico que tem um maço de cigarro no bolso direito e uma piada irônica no bolso esquerdo de seu icônico capote, cabe aqui uma breve apresentação. A DC Comics sempre investiu demais em super-heróis, gênero voltado para toda a família – pais e filhos poderiam curtir as HQs do Superman com a mesma desenvoltura que poderiam curtir os filmes com o Christopher Reeve. Mas aí a editora resolve que alguns poucos títulos mensais seriam voltados ao público adulto.

Não foi da noite para o dia. Impulsionada pelo sucesso do Monstro do Pântano, de Alan Moore, e do Sandman, de Neil Gaiman, a editora criou Vertigo, um selo de quadrinhos voltados para o público adulto. Normalmente, histórias de terror e fantasia.

John Constantine surgiu aí, como coadjuvante do Monstro do Pântano. Arrogante, manipulador, amoral e, acima de tudo, carismático, foi ganhando cada vez mais espaço até estrelar sua própria revista mensal. Naquela época, o Vertigo (hoje extinto) investiu em títulos cujas estrelas, antes mesmo dos próprios personagens, eram os roteiristas. E Jamie Delano, nos primeiros anos, e Garth Ennis, na sequência, proporcionaram um anti-herói inesquecível.

O John Constantine que eu cresci lendo era impetuoso, corajoso, hilário, arrogante. Em suas confusões, via-se envolvido com trambiqueiros, mágicos, demônios e anjos – e era igualmente odiado por todos. Em uma história, após ter encurralado um diabo muito mais poderoso do que ele, saiu de cena erguendo-lhe o dedo do meio e o mandando para aquele lugar. Eu era um adolescente descobrindo o mundo à minha volta. Como não se encantar por tamanha rebeldia irresponsável?

Mais do que isso: Constantine foi o primeiro personagem de quadrinhos pelos quais meus amigos se interessaram. Como não? As histórias eram envolventes, engraçadas, sombrias e com a pitada certa de sexo, cigarro, drogas e bebida – havia, mas não era apenas para chocar o leitor.

Com Constantine dando “nós táticos” tanto em demônios quanto em anjos, poderia parecer que se tratava de um super-herói. Não. Era humano, acima de tudo - cheio de mágoas, recalques, travas e erros. Em uma história, a namorada termina com ele. O que John Constantine faz? Assume a postura pregada por qualquer “coach quântico” de hoje, de “cada porta fechada é outra aberta?”, “não reclame, construa!” ou algo assim? Não. John Constantine entrou em depressão.

Por meses em suas histórias, e algumas edições de sua revista no mundo real, Constantine esteve tão mal que sequer conseguiu voltar para casa. Ficou na sarjeta, sujando seu icônico capote, mendigando, chorando e se lamentando. Consegue imaginar o Batman nessas condições? Ou o Superman? Algum super-herói?

Este personagem cativante até migrou para fora das HQs. Em 2005, virou filme, interpretado por Keanu Reeves – carismático e bom ator, mas que, convenhamos, não foi a melhor escolha possível. No mesmo ano, inclusive, Constantine virou até... videogame (?!). O personagem das sombras, do cigarro, da bebida e da amoralidade dava sinais de que poderia virar pop. Mas nem o filme nem o videogame tiveram muito sucesso, e o cigarro Silk Cut de Constantine ficou por um bom tempo aceso novamente apenas nas páginas das HQs.

Mas nada dura para sempre.

Na última década (começou em 2013), tudo mudou. Constantine deixou de ser um personagem do Vertigo e voltou para os títulos normais da DC. Ou seja, o lado sombrio das suas histórias, regado a magia, sentimentos pesados, cigarros e bebidas, foi substituído por super-heroísmo simples. Sim, ele ainda não tem codinome ou uniforme (só o icônico capote), mas há a eterna luta do bem contra o mal. Ele passou, inclusive, a fazer parte da Liga da Justiça – sim, o mesmo supergrupo de Batman e Superman. Aliás, veja você, ele liderou uma das Ligas da Justiça – há mais de uma equipe com este nome, todas ligadas entre si.

Em 2014, Constantine estreou sua própria série de TV, que misturava horror com fantasia. O personagem, agora, encontrou um ator que lhe deu o cinismo e a arrogância necessários: o britânico Matt Ryan. O seriado parou na primeira temporada, mas o demônio já havia saído da garrafa. Esta série passou a ser considerada parte do “Arrowverse”, o conjunto de obras televisivas da DC Comics que, liderados por Arqueiro Verde, Flash, Supergirl e Patrulha do Destino, já levou mais de cem personagens da editora para a TV.

Constatine virou duas séries animadas, dois longas também animados e ainda apareceu como coadjuvante de luxo na divertida “Legends of Tomorrow”, sempre vivido por Matt Ryan. Eu disse coadjuvante de luxo? Isso foi em um primeiro momento. O carismático patife de Liverpool logo virou um dos protagonistas do seriado, que passa longe do horror: é galhofa pura.

E teve mais. Como coadjuvante, apareceu em videogames (sim, no plural), filmes da Lego (!), série animadas (da infantil “Teen Titans Go!” à adulta “Harley Quinn”, o que mostra o quanto é eclético). Este mês, a DC anunciou a sequência do filme do Keanu Reeves, quase 20 anos depois...

Em 2022, saiu aqui no Brasil “Johnny Constantine: O Mistério da Professora Malvada”, sua primeira HQ completamente voltada ao público infantil. Assombrações e aberrações continuam por lá, mas agora como fantasminhas e monstrinhos. O bom e velho cigarro Silk Cut não teve a mesma sorte, e Johnny agora aparece o tempo todo... comendo chocolate.

John Constantine, o que aconteceu contigo? O arrogante, egoísta, manipulador e inconsequente sacana hoje estrela séries de humor, videogames e gibizinhos infantis. Ou seja, virou pop. Uma completa guinada.

Se isso me incomoda? De modo algum! Para mim, o que vale é a qualidade das histórias. Mas o fato é que a onipresença não rendeu bons frutos a Constantine. A qualidade de suas histórias mensais, na Liga da Justiça ou o título solo, está em queda há muito tempo. Para mim, o ponto mais baixo é uma série de histórias em que ele enfrenta... seu icônico capote. Sério, DC? Estamos com tamanha falta de imaginação? Faltou um programa de qualidade aqui, não?

Quando escrevi, no título e dois parágrafos acima, “John Constantine, o que aconteceu contigo?”, não me referia ao fato de ele ter virado pop. É que sinto falta de boas histórias com ele, seja no papel ou na tela. Pode ser no vindouro filme com o Reeves, em uma eventual série nova ou em suas HQs de terror povoadas por trambiqueiros, mágicos, demônios e anjos. Saudades de me deparar com roteiros engraçados, inteligentes e surpreendentes. E da época em que seu icônico capote era apenas um icônico capote.