Fundação Padre Anchieta

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O jornal espanhol “El País” publicou há poucas semanas que o quadrinista Gerardo Vilches foi às redes sociais pedir que os leitores boicotassem uma obra sua que estava sendo relançada (“Breve historia del cómic”, editora Nowtilus, imagem abaixo). Isso mesmo, boicotar. O motivo é que, segundo ele, a capa desta nova edição foi criada por inteligência artificial.

O mundo inteiro ainda está aprendendo a lidar com inteligência artificial (IA). Não só o mundo dos quadrinhos, claro. E vejo muitos aspectos diferentes referentes ao mundo dos quadrinhos – do lado dos criadores (sejam roteiristas, ilustradores, ou ambos), seja do lado dos leitores.

Separei algumas perguntas que andaram pela minha cabeça – e pelo noticiário – recentemente em alguns aspectos do uso de IA nas HQs. Não trago respostas – é muito cedo para tanto (e, além do mais, quem sou eu...) -, mas alguns pequenos comentários.

A IA vai tirar o emprego de quadrinistas?

Talvez a principal pergunta. A IA já consegue escrever roteiros de quadrinhos e ilustrar páginas. Algumas editoras certamente já estão experimentando IA tanto para roteirizar quanto para desenhar. É capaz que consigam resultados OK. Mas você, enquanto leitor, gastaria seu dinheiro em uma obra que, no máximo, copia outros estilos? Ou usaria seu rico dinheiro para algo de um artista reconhecidamente bom – ou, pelo menos, original?

Eu não pensaria duas vezes. Entre comprar um álbum todo criado por IA ou um feito por Laerte, Naoki Urasawa, Miguelanxo Prado, Marjane Satrapi (imagem abaixo), Marguerite Abouet &Clément Oubrerie, iria sempre prestigiar o trabalho criativo e talentoso dos humanos. Alguns, provavelmente, fariam uma escolha diferente, mas desconfio de que seriam uma minoria. Será que seriam em número suficiente para bancar que editoras passem a publicar apenas quadrinhos criados por IA?

Mas a IA já consegue criar roteiros de quadrinhos?

Sim, sem dúvida. Como experiência para esta coluna, fiz um pedido para uma IA e cronometrei o tempo de resposta. Pedi “por favor, escreva um roteiro para uma HQ de dez páginas protagonizada por mitos brasileiros”.

A resposta demorou menos de dez segundos e começava assim.

“Título: ‘Curupira: O Guardião da Amazônia’

Página 1

Quadro 1

EXT. FLORESTA AMAZÔNICA - DIA

A luz do sol atravessa o denso dossel da floresta amazônica. Uma vegetação exuberante preenche o quadro, com flores vibrantes e pássaros exóticos.

RECORDATÓRIO: Nas profundezas do coração da Amazônia...”

O curupira aqui embaixo – que para mim não parece um curupira – foi criado por IA.

Acho que a verdadeira pergunta é: “a IA consegue criar bons roteiros de quadrinhos?”. Ou, melhor ainda: “a IA consegue criar roteiros de quadrinhos melhores que os bons criadores do meio?”.

IA pode ser útil para roteiristas de quadrinhos?

Eu vejo, talvez ingenuamente, os programas de IA como ferramentas. Assim sendo, elas podem vir a ser usadas para a construção de muita coisa bacana. Por exemplo: um roteirista, após ter algumas páginas prontas, pode pedir para a IA as ilustrar e ver como elas ficariam na página. A partir daí, ele pode ajeitar o layout para o roteiro definitivo, aquele que o ilustrador humano vai seguir – ou usar como base para improvisar em cima.

Há outros recursos mais simples, como achar sinônimos de palavras; simular sotaques; e até sugerir cenas. Ainda estamos aprendendo.

A imagem abaixo foi gerada a partir da pergunta “IA pode ser útil para roteiristas de quadrinhos?”.

IA pode ser útil para ilustradores de quadrinhos?

Os ilustradores, acredito, não precisam de IA para testar layouts. Mas, dependendo do grau de familiaridade dele com o programa em questão, pode tentar variações de cenas, layouts ou cores.

Há muitas abordagens aqui para uma pergunta complexa como esta... vou escolher um caminho. Conheci, quando nos anos em que fiz cursos técnicos de Desenho e, posteriormente, História em Quadrinhos, muitos ilustradores em início de carreira que detestavam escrever. Queriam roteiros prontos. Talvez o IA possa os ajudar. Eles podem sugerir o tema, a IA devolver um roteiro e eles, a partir daí escreverem suas histórias. Provavelmente isso já está acontecendo. Nesses casos, acho que seria bacana ter algo indicando isso nos créditos, como “roteiro escrito a partir de um conceito sugerido por IA”. Ao mesmo tempo, claro, atitudes como esta tirariam oportunidades de emprego de roteiristas.

A imagem abaixo foi gerada a partir da pergunta “IA pode ser útil para desenhistas de quadrinhos?”

IA pode ser útil para quem gosta de fazer fanfic?

Fanfic é, em essência, algo feito por prazer e que não dá lucro. O fã gosta de um personagem qualquer: Liga da Justiça, Asterix, Aya de Yopougon, Astro Boy, Piratas do Tietê e Rocketeer... Aí ele resolve desenhar estes personagens, ou escrever histórias sobre ele (as tais fanfics) e coloca na internet. Como ele não está lucrando com isso, não tem crime de violação de direitos autorais (até onde eu saiba).

Com o advento da IA, isso pode ficar ainda mais divertido. Se uma pessoa é fã de todos os personagens acima, pode bolar uma história mirabolante. Por exemplo, usa este ponto de partida:

“O Astro Boy viaja no tempo e coleta personagens de várias épocas e países para criar uma Liga da Justiça: o Asterix, o Rocketeer, a Mulher-Maravilha e o próprio Astro Boy, liderados pelo maior pirata de todos os tempos: o Capitão dos Piratas do Tietê.”

Pedi para IA uma história de dez páginas com este mote. Começa assim:

“Título: ‘A Liga das Lendas Extraordinárias: Uma aventura que viaja no tempo’

Página 1

Painel 1

EXT. METRO CITY - DIA

Um robô colossal avança pelas ruas de Metro City, destruindo prédios e disparando lasers. Astro Boy, o heroico garoto robô, voa pelo ar, desviando dos destroços.

RECORDATÓRIO: Metro City. Uma cidade que precisa de um herói... ou cinco.”

E, claro, pode pedir ilustrações que tornem sua farta imaginação em algo visível para outras pessoas. Exige paciência, claro – pedi para IA uma “Liga da Justiça” a partir do mote acima e ela me veio com duas imagens horríveis, uma que abre este texto e outra logo acima. Eu teria de ficar batalhando com paciência para talvez chegar a algo que considere minimamente apresentável.

De qualquer maneira, estes são apenas dois exemplos. O universo das fanfics não é exclusivo dos quadrinhos, mas passa muito por eles. E com estas ferramentas sendo cada vez mais aprimoradas, não é de estranhar se passarmos a vez cada vez mais fanfics divertidas e bem ilustradas por aí. Como, a princípio, ninguém lucra com elas, este é um aspecto da IA no mundo dos quadrinhos que não afetaria o emprego de ninguém.

E agora?

Agora, claro, não tenho a menor ideia do que vai acontecer. Como disse no início deste texto, trouxe apenas algumas perguntas – e nenhuma resposta. Há muitas questões de todos os lados deste problema tão complexo. Eu diria que se este fosse um roteiro de uma HQ de dez páginas, escrito ou não por IA, ainda estamos na primeira página.

No primeiro painel da primeira página, para ser mais preciso.