Fundação Padre Anchieta

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Um dos meus livros favoritos é “As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay”, de Michael Chabon. Romance bem escrito, daqueles que prende o leitor e você acaba nem percebendo que são quase 700 páginas. Neste momento, você para e pensa: “por que ele está falando de um romance em uma coluna sobre quadrinhos?”. Eu até poderia dizer que é porque o Kavalier e o Clay são quadrinistas, mas não é por isso. É por algo profundamente ligado aos quadrinhos – e a outras formas de arte.

Vou destacar um trecho do livro, inspirado em um momento da história dos Estados Unidos. Houve um momento conhecido como macarhtismo, em que políticos passaram a perseguir pessoas que pensavam diferentemente deles, como comunistas, intelectuais e artistas (Charles Chaplin, por exemplo). Enfim, no livro, temos um trecho que diz o seguinte:

“Os artigos de jornais que Joe lera a respeito da iminente investigação do Senado sobre as revistas em quadrinhos sempre citava o ‘escapismo’ entre a ladainha de consequências daninhas da sua leitura e se demorava no efeito pernicioso, sobre as mentes jovens, de satisfazer o desejo de fuga. Como se pudesse existir um serviço mais nobre ou necessário na vida.”

A tal comissão do Senado norte-americano sobre HQs de fato aconteceu, e as consequências foram péssimas - graças também a um tosco livro chamado “A Sedução dos Inocentes”. As editoras tiveram de criar uma autocensura chamada Código de Ética (um nome patético). Muito ficou proibido de ser abordado nos quadrinhos norte-americanos por mais de meio século, como homossexualidade e o consumo de drogas.

Mas voltemos à reflexão do livro sobre escapismo. Os dois protagonistas são jovens judeus que conseguiram escapar da Europa para a América pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Perderam muitos parentes, e muito próximos. Viveram um drama absurdo. Com pouco dinheiro, pouca esperança no futuro, sem as pessoas mais amadas por perto, com um luto imensurável – é de estranhar que gostem de, nos poucos momentos de lazer, esqueceram a realidade e se divertir?

Jovens judeus em Nova York durante a Segunda Guerra Mundial, acompanhando à distância os avanços do nazismo. Este contexto não foi colocado à toa para os protagonistas. Ele reflete, de uma maneira ou outra, a vida, naquele mesmo período, dos então jovens Jack Kirby, Joe Simon, Will Eisner, Jerry Siegel, Joe Shuster, Bob Kane, Stan Lee. Se você não está associando o nome às pessoas, são os criadores de personagens como Capitão América, Superman, Spirit, Batman, Vingadores, Quarteto Fantástico, X-Men...

E, claro, eles não eram os únicos. Muitos dos seus leitores também se sentiam à parte e se deliciavam com estes momentos de escapismo. Mais do que isso: eles precisavam destes momentos. Mesmo com experiências de vida diferentes.

Para deixar ainda mais claro, em seu romance, o quanto valoriza o “escapismo”, Michael Chabon deixou a sutileza de lado. Kavalier e Clay criaram um super-heróis dos quadrinhos chamado... Escapista. Sua grande característica? Escapar de tudo, é claro.

Chabon não defende, de modo algum, que a única função dos Quadrinhos, ou da Arte, seja proporcionar momentos de escapismo. Nem eu. E, falando por mim, eu acredito que há espaço para tudo. Posso, no mesmo dia, dar muita risada com a Liga da Justiça de J.M. DeMatteis e Keith Giffen e, pouco depois, ler o maravilhoso “Maus”, de Art Spiegelman, uma das maiores obras contra o nazismo a que já tive acesso. Mudando o exemplo para mangás: me diverti com o suspende de “Monster”, de Naoki Urasawa, e depois ler “Gen - Pés Descalços”, linda obra de Keiji Nakazawa sobre os efeitos da bomba atômica no Japão ao fim da Segunda Guerra Munidal. Ou “Tintim”, de Hergé, e “Paracuellos”, de Carlos Giménez. Os exemplos são infinitos – fora dos quadrinhos, também. Qual o problema em assistir “De Volta para o Futuro” no sábado e “A Onda” no domingo? Ou de ouvir “Pedro e o Lobo”, de Prokofiev, e depois “The Wall”, do Pink Floyd? De assistir a um episódio de “Dark” e depois um de “A Guerra do Vietnã”, de Ken Burns e Lynn Novick? São todas obras muito bem feitas, para dizer o mínimo.

A importância do escapismo, nos Quadrinhos ou em qualquer outra arte, não deve ser subestimada. Lê, assiste, ouve quem quiser. Há espaço para tudo. Infelizmente, até para os chatos que patrulham os gostos alheios.

ps – dois quadrinhos que já saíram aqui no Brasil homenageiam o livro de Chabon: “As Incríveis Aventuras do Escapista”, estrelado pelo super-herói que foi “inventado” por Kavalier e Clay, e “Os Escapistas”, uma ótima HQ em que um fã luta pelos direitos do personagem. São imagens deles que ilustram esta coluna.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.