Fundação Padre Anchieta

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Nem todo mundo está familiarizado com o tema, então não custa relembrar: Libras é a ngua brasileira de sinais, usada pela comunidade surda e por não surdos.

São vários os motivos que me atraíram. Inclusão, claro!. Mas também inovação: abrir mão do alfabeto escrito e utilizar a Libra é, no mínimo, criativo. O universo retratado também funciona como uma porta para um mundo sobre o qual tenho muito a aprender: a comunidade surda. Só quatro histórias deste projeto foram publicadas, e dei sorte que a primeira que li abordava as Surdolimpíadas. Eu, que amo assistir esportes, jamais tinha ouvido falar.

Resolvi não desperdiçar a oportunidade a que esta porta me levava e resolvi atravessá-la, para aprender um pouco mais. Para tanto, entrevistei dois pesquisadores ao mesmo tempo:

1 - a pós-doutora Kelly Priscilla Lóddo Cezar, que é professora adjunta do curso de licenciatura em Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e líder do projeto de pesquisa “HQ’s sinalizadas”, que não só cria quadrinhos para surdos como cuida de sua distribuição;

2 – o professor Danilo Silva, mestre e atual doutorando da UFPR, que é professor efetivo do curso de licenciatura em Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e colaborador do “HQ’s sinalizadas”.

A profa. Kelly Cezar é ouvinte, enquanto o prof. Danilo Silva é surdo. Os dois trabalham em conjunto para que as HQs sejam de fato bilíngues e atendam às necessidades linguísticas e pedagógicas a que se propõem.

Esta reportagem foi gentilmente passada para libras pela tradutora-intérprete de Libras Jéssica Honório, a quem deixo um enorme obrigado.

Hábito de Quadrinhos - Quais quadrinhos a sra. gosta de ler? Tem algum personagem favorito?

Profa. Kelly Cezar - Difícil de dizer quais quadrinhos, eu sempre amei quadrinhos e agora com meus filhos passamos o tempo todo imerso neles. Minha infância toda foi com a turma da Mônica, mas confesso que o qual eu mais gosto e continuo lendo é o Chico Bento. Nestas férias eu aproveitei para ler “O Escultor”, de Scott McCloud, e “Cumbe”, de Marcelo D'Salete, e neste momento estou “passeando” pelos quadrinhos argentinos na obra “Bienvenido”, de Paulo Ramos.

Hábito de Quadrinhos - E quais serviram de inspiração para o projeto "HQ’s sinalizadas"?

Profa. Kelly Cezar - Infelizmente a resposta que tenho para lhe dar não é nada agradável, pois a inspiração para continuar a pesquisa e a criar o projeto institucional “HQ’s sinalizadas” foi saber via relatos e conversas com adultos e com crianças surdas que não se identificam com o gênero história em quadrinhos, pois não se sentiam representados. Por ter muita escrita, mesmo que as cores fossem lindas e atraentes, não tinham contato com esse gênero.

O estilo que motivou as ilustrações da primeira HQ foram os mangás, já que o meu orientado gostava do gênero, apresentava facilidade em ilustrar e acreditávamos que as expressões faciais poderiam ser mais exploradas naquele momento, já que havíamos optado por reduzir os “balões”, aspectos verbais.

Como inspiração foram mais os estudos teóricos dos especialistas brasileiros Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos sobre quadrinhos na educação. Fundamentados neles, adaptamos o gênero mais tradicional para hibridicidade com vídeos, assim conseguimos transmitir em libras como primeira língua assegurando a acessibilidade linguística.

Hábito de Quadrinhos - A sra. poderia, por favor, explicar o que é o projeto "HQ’s sinalizadas"?

Dra. Kelly Cezar - O projeto institucional “HQ’s Sinalizada” é um trabalho amplo de várias etapas, difícil de ser explicado em poucas palavras. De uma forma geral, tem sido visto como uma metodologia de criação de histórias em quadrinhos sinalizadas com o intuito de elaborar sequências didática bilíngue para o ensino de surdos.

Trabalhamos com temas transversais dos artefatos da cultura surda que envolve sua história, sua língua, sua cultura e abordamos a saúde. O aluno-orientando tem a liberdade de escolher o tema a ser desenvolvido na temática do projeto.

Depois dessa etapa, iniciamos as pesquisas bibliográficas e, após o roteiro pronto, iniciamos os convites para criação da equipe de especialista que irá compor a HQ criadas e realizamos um levantamento etnográfico dos principais conceitos que será na temática investigada. Isso se dá em função de as línguas de sinais não terem muito registro dos sinais em diferentes áreas do conhecimento. Dessa forma, criamos sinalários e glossários como forma de quebrar a barreira linguística do tema que está sendo estudado.

Depois da criação da HQ sinalizada, os alunos, como última etapa, elaboram sequências didáticas bilíngues para propor a forma como os professores poderiam utilizá-las em suas aulas na perspectiva teórica que adotamos, o bilinguismo para surdos.

Hábito de Quadrinhos - Como surgiu a ideia de haver uma série de HQs em libras?

Profa. Kelly Cezar - A ideia começou na semana acadêmica do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná, em 2016. Os professores surdos Danilo Silva e Suellen Floriano apresentam em palestra sobre os artefatos culturais do povo surdo, dando destaque à Arte Surda, mostraram a participação dos surdos no mundo da arte: pinturas, esculturas, teatros, humor, poesia, entre outros.

Em uma das artes apresentam uma tirinha produzida por um de nossos alunos do curso de letras libras, Luiz Gustavo Paulino de Almeida. Ele e eu estávamos presentes no auditório. Ao saber que Luiz desenhava e que já havia me procurado para desenvolver uma pesquisa, eu imediatamente o convidei para produzir uma história em quadrinhos para a comunidade surda atendendo a visão socioantropológica da linguagem que subjaz a visão bilíngue de ensino para surdos (língua de sinais como a primeira língua e escrita oficial do país como segunda língua).

Após dois anos de muito estudo e de identificar que os depoimentos e relatos de surdos que não se identificavam com o gênero HQ, organizamos um gênero híbrido em que articulamos vídeos, ilustrações, redução da linguagem verbal (escrita) e intensificamos as expressões faciais dos personagens e escolhemos uma temática de muito sentido para comunidade. Aí lançamos, em 2018, nossa primeira HQ: O Congresso de Milão.

Contamos com o apoio de colegas de trabalho, dos alunos e de especialista na área. Toda supervisão foi realizada pelo professor Danilo Silva. Até o momento, a HQ era chamada de HQ para surdos e após a excelente recepção pela comunidade, alunos, professores e a repercussão de divulgação, o prof. Danilo Silva e eu reformulamos o projeto institucional e demos ênfase para “HQ’s sinalizadas”, pois além da língua brasileira de sinais, o interesse em trabalhar com outras línguas de sinais no Brasil, como as indígenas, e fora do país já começava a existir.

Hábito de Quadrinhos - Quais são os objetivos de vocês com este projeto?

Profa. Kelly Cezar e Prof. Danilo Silva - Temos vários objetivos com esse projeto. O principal é levar para as comunidades surdas e não-surdas o conhecimento de línguas de minoria existentes no país como patrimônio cultural da humanidade, demostrando sua língua (vídeos em línguas de sinais), sua história (ilustrações e escolha dos enredos) e sua cultura. Sabemos que pela falta de acessibilidade linguística, a própria cultura surda, em grande parte, desconhece sua própria história. Isso se deve à falta de divulgação e valorização das línguas de minoria e ao preconceito ainda existente sobre as línguas de sinais, em grande parte, por parte dos familiares.

Outro objetivo que o projeto tem é criar personagens que representem a cultura surda levando a possibilidade de se sentirem confortáveis neste gênero e de “serem protagonistas” de suas histórias. O que podemos dizer que vem acontecendo.

Também utilizar uma das etapas da criação das HQs, criação de sinalários e glossários, em vídeos para realizar os registros de sinais existentes ou provisórios para as temáticas desenvolvidas, assim auxiliamos intérpretes, professores e outros pesquisadores no registro e uso dos sinais.

Dessa forma, podemos dizer que a estrutura composicional híbrida do gênero “HQ’s sinalizadas” objetiva aos não pertencentes da cultura que estamos diante de uma língua visual espacial com estrutura linguística diferente das línguas orais, assim a estrutura da língua escrita também é diferente e dessa maneira vamos desmitificando o conceito de “erros” para estruturas sintáticas diferentes, línguas diferentes que automaticamente necessitam de metodologias e de materiais adequados para a língua em questão, em especial, no que tange a modalidade da escrita em contextos de aprendizagem.

Dessa forma, acreditamos que a linguagem dos quadrinhos vai ao encontro da visualidade das línguas de sinais e que com alguns ajustes (como os mencionados) tornam-se um gênero com grande potencial de adentrarem a cultura surda.

Hábito de Quadrinhos - Quais são as maiores dificuldades ao se criar e distribuir uma HQ em libras?

Prof. Danilo Silva - O maior desafio que nós temos é lutar para reconhecimento do nosso projeto, em nível institucional. Necessitamos de recursos financeiros para auxiliar a continuidade das criações das histórias em quadrinhos. Até o presente momento, a professora Kelly e seus orientandos têm assumido os custos e atualmente eu também.

Nossa maior dificuldade foi de uma editora “comprar a ideia” do projeto, pois trabalhar com diferentes modalidades, vídeos, ilustrações e sem nenhum modelo anterior foi motivo de vários “nãos”, foi então que a professora Kelly se recordou de uma colega de doutorado Fernanda Massi que tem uma editora e contou o objetivo do projeto, mesmo sendo desafiador, o “SIM” havia chegado. Assim conseguimos colocar no ar e gratuitamente para comunidade a primeira, então HQ sinalizada criada na universidade.

A grande finalidade, ou melhor dizendo, o nosso sonho, foi e continua sendo distribuir os materiais gratuitamente para as escolas inclusivas/bilíngues públicas para estudantes surdos, em especial, para as crianças surdas terem acesso à leitura via história em quadrinhos como as crianças ouvintes. Junto a isso, realizarmos, via projeto de extensão, cursos de formação de professores bilíngues para discutir a relevância do gênero para o processo ensino aprendizagem das crianças surdas tendo acesso à leitura da escrita como segunda língua para eles, por isso, a importância de se elaborar junto as sequências didáticas bilíngues levando a diferença linguística e cultural como fatores essenciais para o ensino e para o trabalho junto as famílias.

Por este motivo, que ao definirmos a temática realizamos a composição de uma equipe de especialistas sobre a temática, em especial, especialistas surdos, visto que os surdos sentem e expressão a partir de suas experiências trocas entre surdos e ouvintes e enriquecemos o nosso conhecimento e tentamos transpor ao máximo que conseguimos para sociedade.

Hábito de Quadrinhos - Qual tem sido o retorno do projeto? O que mais tem agradado vocês?

Profa. Kelly Cezar e Prof. Danilo Silva - Hoje estamos vivendo um grande momento, mesmo com grandes dificuldades de conseguir publicar, as “HQ’s sinalizadas” vêm sendo procuradas por diferentes pesquisadores (instituições) dentro e fora do país para compreender melhor a metodologia, que de certa forma é nova e vem sendo aprimorada a cada publicação. Junto a isso, estamos tendo a oportunidade de dialogar via reportagens e entrevistas com a sociedade divulgando os trabalhos e as línguas de sinais. Devemos a isso a indicação, em 2020, da HQ “A Mulher surda na segunda guerra mundial”, ao troféu HQ Mix [o Oscas dos quadrinhos nacionais] na categoria outras linguagens. Em que nosso orientando surdo e judeu protagonizou a história da história e contamos com o apoio da gibiteca e do museu do Holocausto de Curitiba e do historiador Paulos Vaz de Carvalho.

Podemos dizer que estamos satisfeitos de trabalhar os materiais que já foram publicados em diferentes áreas promovendo a acessibilidade linguística e cultural envolvendo a pessoa surda, a libras e as línguas de sinais. Observamos que muita gente reconhece nosso trabalho e também a procura de pessoas externas, pesquisadores e alunos aumentaram para participar do projeto objetivando criar histórias sinalizadas.

Atualmente, estamos com duas histórias em quadrinhos em fase de finalização e mais cinco em fase inicial (elaboração de roteiros escritos e sinalizados e ilustrações iniciais) que envolvem os alunos da UFPR em diferentes temas: índios surdos, LGBT, tecnologia, diabetes, comunicação com família dos surdos, entre outros, contando com a parceria de diferentes instituições e especialistas.

Além disso, outro projeto importante que está se consolidando na UFPR, em parceria com esse, é o do professor Danilo Silva, surdo e doutorando, que aborda a criação de materiais bilíngues, dando destaque às HQs sobre o contexto histórico sobre os surdos.

Esses projetos contam com o apoio da Gibiteca de Curitiba, que em parceria com o Fúlvio Pacheco, vamos abrir cursos gratuitos para comunidade em libras, assim que a pandemia acabar. O projeto precisou ser suspenso, mas estamos retomando o cronograma e a metodologia.

ps 1 – é possível saber mais sobre o projeto “HQ’s sinalizadas” nesta exposição virtual, finalista em sua categoria do Troféu HQ Mix, o Oscar dos quadrinhos brasileiros: A mulher surda na Segunda Guerra Mundial.

ps2 – é possível saber mais sobre a Libra na Lei 10436/2002; Decreto 5626/2005.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.