Quando comecei a fazer terapia, muito tempo atrás, a sala de espera do meu então psicólogo tinha vários livros teóricos sobre psicologia... e uma HQ: “A Balada do Mar Salgado”, estreia do personagem Corto Maltese, criação do italiano Hugo Pratt. Fã de quadrinhos, achei curiosa aquela presença ali. Ele me explicou:
“Uma história do Pratt vale como uma pequena aula de psicologia humana. Um personagem pode até ser um pouco bom ou meio mau, mas sempre será um misto de ambos. Não há ninguém superficial, todos são difíceis...
Isso sem falar que, em uma das histórias, sua mãe, uma cigana, tentar ler o futuro do filho na palma da mão e não consegue: ele não tem uma ‘linha da vida’. O rapaz pegou uma faca e se cortou superficialmente, ‘escrevendo’ a sua linha da vida: seu futuro, percebe-se ali, será determinado por ele mesmo. Há poesia em suas aventuras.”
Eu quis abordar Hugo Pratt nesta coluna porque a editora Trem Fantasma colocou em pré-venda “Morgan”, último livro do autor.
Hugo Pratt (1927-95) nasceu em Rimini, na Itália, mas cresceu em Veneza. Morou em muitos países, como Suíça (onde morreu), Etiópia, Argentina... e Brasil. Seu pai lutou na guerra, onde foi feito prisioneiro e morreu nessa condição. O campo de batalha é um tema presente nas histórias de Pratt.
O já citado Corto Maltese é seu personagem mais famoso: um marinheiro que tem seu próprio senso de ético e honra. Suas histórias circulam pelo mundo: a primeira aventura publicada se passa na Polinésia, mas há também passagens por Etiópia, Argentina, Rússia... e Brasil.
Eu conhecia Pratt de nome, mas nunca o havia lido. Quando eu era jovem, as edições brasileiras de Corto Maltese eram lindas, mas caras e difíceis de achar. Levou um tempo para eu completar a coleção (inclusive com volumes de português de Portugal), mas valeu a pena.
Claro que aquelas palavras do psicólogo influenciaram o jovem Pedro de então, mas reli as aventuras do Corto nos últimos anos e continuem gostando. A arte é linda, os personagens são cativantes (e, sim, profundos), as tramas são envolventes. É um ritmo europeu, bem distante da velocidade alucinante da dupla Marvel-DC: mais pausado e reflexivo.
Gostei do que o psicólogo falou de “poesia em suas páginas” (não lembro as palavras exatas, mas é esse o sentido), mas não apontaria isso como algo dominante. Sim, há lirismo em algumas passagens e até nos títulos (gosto muito de “A Balada do Mar Salgado”). Mas há drama demais para eu ressaltar a poesia. Afinal, muitas das histórias têm a ver com guerra.
Corto Maltese nasceu em Malta no final do século 19. Suas histórias se passam em conflitos ou lidam com as consequências de eventos como a Guerra Russo-Japonesa (1904-05), a Primeira Guerra Mundial (1914-19), a Guerra Civil Russa (1917-23) e a Guerra Civil Espanhola (1936-39). Não diria que são necessariamente histórias sobre esses conflitos, mas se há guerras envolvidas, há mortes, traições e tiros. Consequências e lutos. Pratt viveu isso na vida real, Corto vivencia isso em suas histórias.
O talento de Pratt não ficou restrito a Corto Maltese. Há aventuras longe da guerra, como o laureado “Verão Índio”, escrito por ele e ilustrado por Milo Manara, um drama ambientado nos Estados Unidos do século 17. Este álbum ganhou o prêmio de melhor obra estrangeira na edição de 1987 de Angoulême, o mais prestigioso festival de quadrinhos da Europa. Pratt, aliás, já havia sido premiado lá em 1976, com “A Balada do Mar Salgado”.
Ausentes em “Verão Índio”, que tem outros tipos violentos de conflito, os campos de batalha e as consequências de uma guerra aparecem em “Sergeant Kirk” (em que ele ilustrou roteiros do incrível argentino Héctor Germán Oesterheld); “Ernie Pike” (também com histórias escritas por Oesterheld); e a série “Os Escorpiões do Deserto”.
“Morgan”, o livro que está sendo lançado, retrata um período na vida de um tenente da Marinha britânica em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. A dor dos campos de batalha certamente estará presente, bem como o enorme talento de Pratt. Estou curioso para ver como ficou o último trabalho deste grande artista.
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