É comum, no Brasil e nos EUA, confundir super-heróis com histórias em quadrinhos. Super-heróis é um gênero, assim como terror e comédia, e tem brilhado nos últimos anos mais nos cinemas e na TV do que nas HQs – graças ao muito bem orquestrado Universo Cinematográfico Marvel. E quadrinhos são uma forma de arte, assim como literatura, cinema e música. É comum confundir, mas não caia nessa.
Há super-heróis (ou algo parecido) bem interessantes fora das HQs. E uma super-heroína que fez sucesso na França no início do século 20 está de volta após um século sem aventuras – ela surgiu na literatura em prosa, e agora voará pelas páginas dos quadrinhos
Eu nunca havia ouvido falar de L'Oiselle (eu traduziria como “Mulher-Pássaro”) até ler uma matéria do “Le Monde”. Ela foi criada em 1909 pela escritora Renée Gouraud d'Ablancourt e suas aventuras saiam, em prosa, em uma revista francesa.
A personagem principal é Véga de Ortega, uma mulher que consegue voar (o codinome L’Oiselle não nasceu à toa). Como tinha poderes e os usava para o bem - L’Oiselle pertencia a uma organização secreta que enfrentava outra organização secreta -, ela é considerada pela mídia local a primeira super-heroína francesa.
Podemos abrir um parêntese aqui: qual o conceito de super-herói e quem é o primeiro deles? Seria L’Oiselle, de 1909? Ou o Fantasma, também conhecido como o Espírito que Anda, que é de 1936? O Superman, de 1938? Personagens de pulp fictions, como Doc Savage (1933), ou do rádio, como o Sombra (1930)? O imortal Rui de Leão, criado em 1872 pelo brasileiríssimo Machado de Assis?
Voltando para a França do século passado: Véga não nasceu com o dom de voar: ela usa asas artificiais, providenciadas pela organização secreta para a qual trabalha. A Terra em que vive é mais avançada que a nossa, e a tecnologia de lá deu saltos incríveis, o que permitiu este tipo de tecnologia em pleno ano de 1909 (estamos em 2022 e ainda não vi nada parecido).
Após saírem na revista, as aventuras de L’Oiselle foram compiladas em um livro publicado em 1911: “Véga la Magicienne” (“A Mágica Véga”, em tradução livre).
E, por 11 décadas, não se ouviu falar mais nada sobre ela.
Mas eis que, no início deste mês, “Véga la Magicienne” foi republicado na França. E, finalmente, L'Oiselle levará suas asas para os quadrinhos. A editora franco-americana FairSquare Comics está lançando “Lady-Bird Begins”, uma aventura adaptada por Fabrice Sapolsky, Dawn J. Starr e Daniele Sapuppo.
Não tenho ideia de como ficou a HQ. Também não li o romance francês. Ambos me atraem. O romance, pela originalidade da protagonista: quantos personagens da ficção já voavam para combater o crime antes de 1909? O quadrinho, pelo resgate histórico. Não sei se seria a mesma coisa, mas acho que pode ser curioso, por exemplo, um retorno a personagens interessantes da cultura brasileira, readaptando-os para o século 21.
Como estaria o imortal Rui de Leão, hoje com quase 200 anos? E se um descendente de Peri e Ceci fosse um ativista atuando por causas ambientais? O que aconteceu com a civilização isolada e tecnologicamente avançada descrita por Menotti del Picchia em “A República 3000”? Literatura, quadrinhos... Cultura em geral, com uma bela dose de imaginação, tem potencial para ir muito longe.
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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