Caro Angeli,
Como quase todo brasileiro da minha geração, cresci com HQs infantis. Quando cheguei a uma certa idade, virei exceção: continuei lendo quadrinhos. Naquela época, não tínhamos muitas opções: as BDs europeias eram caras e difíceis de achar, e os mangás eram raros e mal distribuídos. Mas eu tinha os super-heróis (DC e Marvel) e “Chiclete com Banana”, “Piratas do Tietê” e “Los 3 Amigos”. Ou seja, você, Laerte e Glauco (mais tarde, o Adão).
Havia vários motivos para eu gostar tanto da “Chiclete”. O mais óbvio é que era muito engraçado. Rê Bordosa sofrendo com seus excessos, Mara Tara também sofrendo com seus excessos, Skrotinhos atazanando todo mundo, Wood & Stock fumando baseado de orégano...
Outro ponto interessante: eram quadrinhos que me apresentavam ao mundo adulto – mais especificamente, ao Brasil dos anos 80 e 90. Por mais que eu gostasse de Liga da Justiça e X-Men (e que eles abordassem temas interessantes), poucas obras de arte acessíveis à minha geração nos colocaram tanto em contato com o misterioso universo de quem passa das duas décadas de vida. Nenhum livro ou filme da minha adolescência foi tão transparente quanto a sexo, drogas e bebidas quanto Mara Tara, Rê Bordosa e Wood & Stock. Era um retrato da sociedade adulta na qual eu estava entrando: ó, essas coisas existem. Olhe ao seu redor. Nem tudo é tão simples ou brilhante quanto parece.
Às vezes, Angeli, suas histórias eram a piada pela piada. Mas em muitos casos, havia uma crítica que me fazia rir do ridículo que eu identificava ao meu redor. Sabe quantos “clones” do Bibelô e seu machismo estúpido estudavam comigo no colegial? Ou caras mais velhos do que eu, já cursando faculdade, falando as mesmas platitudes do Rhalah Rikota?
Virei adulto e passei, como nunca, a apreciar suas charges. É preciso entender de humor, mas também de política e de comportamento humano, para ser tão sintético, crítico e certeiro ao mesmo tempo. Por volta deste período, suas tiras não traziam mais estes personagens. Mas eles continuavam existindo ao meu redor. O machismo, os excessos (na droga, no álcool, no sexo), nada disso desapareceu dos anos 80 para cá. O mundo ao qual você me apresentou continua existindo – com ainda mais “tipinhos inúteis”, rótulo que você inventou.
(Aliás, talvez esteja virando um dos seus personagens, Angeli. Estou barrigudo, careca e saudosista como a dupla Wood & Stock... Mas na maior parte do tempo, estupefato pelo mundo que me cerca, me sinto como o protagonista de “Angeli em Crise”. )
Um ponto interessante é que suas histórias (e as da Laerte, para ser justo) me ajudaram a ser mais sociável. Fui um menino/adolescente introspectivo, que se refugiava de uma timidez galopante enfiando a cara nas páginas de livros ou HQs. E ninguém se interessava se eu tinha algo a dizer sobre um livro do Michael Ende ou uma saga cósmica do John Byrne. Agora, se eu abria um “Chiclete com Banana”... Seu humor atingia – e ainda atinge – não só quem lê quadrinhos, mas a todos. É um humor universal. A pessoa pode não comprar HQ ou achar que “gibi é coisa de criança” (acredita, Angeli, que ainda tem quem pense assim?), mas vai dar risadas ao ler Skrotinhos, Bob Cuspe ou Rigapov. Rir e querer comentar a respeito: “essa foi demais!”, “nossa, conheço um cara assim!” etc.
Entendi, pelas entrevistas da sua mulher, Carol, que você está entrando em uma nova fase. Não sei o que vem pela frente para você. Mas seus personagens estiveram comigo durante a sempre difícil adolescência. E sua arte ajudou a moldar meu gosto no momento em que comecei a descobrir e me interessar pelos quadrinhos – fase que, felizmente, dura até hoje. Então, se eu puder te ajudar em algo, pode contar comigo. Boa sorte nesta nova fase. “Punk is not dead!”.
Abraços,
Pedro
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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