Ao assistir à gravação do jogo entre Goiás e meu Corinthians, partida realizada na última quinta-feira (2) e válida pelo Brasileirão, bateu uma nostalgia de estádio de futebol. Sempre gostei mais de jogo em campo do que da transmissão pela TV. Com o passar do tempo, alguns fatores motivaram meu afastamento natural e progressivo dos estádios, entre eles um que se relaciona à expressão “politicamente correto”: passei a não me sentir bem-vindo por ser gay.
Tenho mais de meio século de vida e frequento estádios desde a adolescência. Não sou um iniciante, portanto. Já fui a jogos com excursões em ônibus podres e lotados de torcedores desconhecidos. Palavrões e xingamentos sempre frequentavam esses ambientes majoritariamente masculinos e jovens, mas pareciam não embutir raiva contra grupos sociais específicos. A violência estava mais ligada a brigas entre torcidas rivais, condição que persiste no século 21, infelizmente.
Mas os ataques homofóbicos que viraram comuns nos últimos anos, especialmente aqueles direcionados ao goleiro que se prepara para recolocar a bola em jogo, em um “tiro de meta”, parecem alimentados por outros sentimentos que não a rivalidade esportiva. Carregam no som e nos olhos a carga mesquinha da intolerância.
Talvez eu fosse mais ingênuo à época, mas o áudio das torcidas gravado e utilizado nas transmissões de futebol sem público, como as que estão acontecendo durante a pandemia do coronavírus, me remetem àquele período. Tem vaia, tem aplauso, tem cantos. Se há xingamentos, ficam restritos aos indivíduos no calor da torcida, não entoados em um grito de guerra da massa, com o estádio inteiro gritando contra aquilo que você é. E o orgulho, que define quem somos, foi me separando do gramado.
Ao longo dos anos, observei a escalada das agressões homofóbicas verbais até se tornarem muito claras e audíveis, inclusive pelas transmissões da TV. Os xingamentos viraram gritos furiosos, a feição dos torcedores flagrados pelas câmeras em momentos como esse é de gente com raiva, ódio. Parece como uma oportunidade, uma licença para destilar preconceitos publicamente sem ser importunado pelos “chatos” politicamente corretos. Com tanta permissividade, justifica-se que o Brasil continue liderando a lista vergonhosa dos países com mais assassinatos de LGBTQI+, segundo relatórios do Grupo Gay da Bahia (GGB).
Não é exclusividade do público gay ter de aturar gracejos, piadas, ofensas e opiniões equivocadas sobre suas características físicas ou de comportamento. Acontece com brancos que se acham no direito de questionar condutas antirracistas, homens que acham que podem bradar contra o feminismo, magros que consideram gordos doentes e por aí vai. A falta de empatia está diretamente ligada à crítica aos direitos fundamentais de todo indivíduo.
Sem me atrever a enveredar por reflexões acadêmicas sobre a expressão – Moira Weigel, pesquisadora associada da Universidade de Harvard (EUA), já escreveu um artigo definitivo sobre o tema na revista Serrote, do Instituto Moreira Salles (IMS), e a Revista USP fez um dossiê abrangente sobre o assunto em 2018 -, considero oportuno iluminar que “politicamente correto” vem da junção do advérbio referente ao relacionamento entre grupos na sociedade (do grego πολιτικός) com o adjetivo que indica exatidão, ausência de erro. Ou seja, pode-se traduzir livremente como “relacionamento social correto”.
Embora tenha sido incorporado aos discursos autoritários e populistas para denunciar uma suposta dominação de minorias imorais – e permitir a manipulação da maioria moralista -, o termo também sofre ataques dos que defendem a liberdade de expressar preconceitos livremente, de emitir opinião sobre os outros mesmo que ofenda, que seja agressivo. São movimentos baseados na exclusão de indivíduos e de grupos, “uma retórica que inviabiliza o debate democrático”, como pontuou a pesquisadora Moira.
A lembrança trazida pelo áudio politicamente correto que sonoriza os jogos sem público é um sinal de otimismo. Já que esses tempos de pandemia sugerem uma revisão de alguns hábitos, que as gravações possam servir de inspiração para clubes e torcedores coibirem exemplarmente a homofobia, o racismo e outros preconceitos nos gramados e fora deles. Que possam mostrar que há entretenimento sem ofensa e futebol sem barbárie.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018) e pesquisador associado ao ESPM MediaLab.
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