Fundação Padre Anchieta

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Algumas práticas humanas bastante inconvenientes resistem ao tempo, entre elas está a inclinação, aparentemente global, de todos falarem ao mesmo tempo em um encontro. O comportamento resistiu também ao espaço e se reproduz nas reuniões virtuais a que estamos submetidos por conta da situação pandêmica, sim, mas também porque são eficientes.

Tão antigo quanto popular, o provérbio português “quando um burro fala, o outro abaixa as orelhas” ganha importância adicional no ciberespaço. Em qualquer ambiente em que estejam mais de uma pessoa em interação verbal, a conversa fica mais compreensível se cada um falar a seu turno. Não parece haver dúvidas sobre isso.

Além de demonstrar civilidade, o hábito permite que todos os argumentos possam ser ouvidos e comentados pelos demais. Do contrário, tudo vira debate político em época de eleição, cuja mediação é indispensável, conforme se observa no Brasil e foi visto com indignação nos recentes embates presidenciais nos EUA, país que, aliás, tratou de providenciar botão de liga e desliga para os microfones dos concorrentes.

Se todo encontro fosse semelhante aos debates eleitorais, talvez o ditado devesse ser atualizado para “quando um burro fala, o outro interrompe e é repreendido pela águia”. A cena lembraria as fábulas de Esopo (620 a 564 a.C.), o escritor grego considerado “pai” desse gênero literário, que transmite mensagem ou ensinamento por meio de diálogos entre personagens do mundo animal.

Nas reuniões virtuais, o uso dos microfones ganhou destaque. É praticamente inexistente um encontro desse tipo que o recurso de áudio não apareça como interjeição recorrente nas falas, seja para liga-lo ou para desligá-lo. A primeira motivação é a mais comum exatamente porque os anfitriões dessas conversas funcionam como mediadores e tendem a desligar os microfones de todos os participantes para garantir que apenas um “burro” fale por vez.

Mas há muitos usuários desses programas que já se tocaram dessa etiqueta e procuram manter o microfone desligado quando não estão falando. Essa prática também evita vazamentos de sons, digamos, estranhos ao tema da reunião, como choro de bebês, latidos, furadeiras etc. Só que quase sempre se esquece de ligar o recurso ao se iniciar uma fala e lá vem o “abra o microfone!” - que ficaria até mais justinha ao idioma se o verbo fosse “ligue” ou “ative” o microfone.

Em encontros presenciais, é ruim e grosseiro falar ao mesmo tempo que outra pessoa, mas muitos conseguem ter audição seletiva e seus cérebros passam a considerar o discurso de apenas um dos participantes. Não deixa de ser um dom interessante, mas que ajuda pouco nas interações pela internet.

Em geral, quando mais de um microfone está ativado nas reuniões online, nada do que é dito pode ser entendido. Como as ondas sonoras viram sinais elétricos para poderem trafegar pela rede, é de se esperar que fiquem misturadas se forem emitidas simultaneamente, chegando aos receptores todas embaralhadas, metalizadas e incompreensíveis.

Quando a reunião em questão é uma transmissão pública ao vivo, como entrevistas, debates ou palestras, a confusão de sons pode ficar hilária. Quem fala sempre acha que foi compreendido por todos, pois não ouve os sinais misturados no fim da linha. Então, as expressões faciais no vídeo ficam em descompasso com o que efetivamente se entendeu do outro lado da tela. Se o emissor aparece rindo no vídeo, por exemplo, deduz-se que falou algo engraçado, mas sem saber o que foi dito exatamente.

Nesse momento, alguém percebe a falta de compreensão e pede para a pessoa repetir, mas tal solicitação verbal é mais um sinal elétrico a se embaralhar nas demais falas. Um pedido de desculpas por interromper o outro também fica misturado ali, formando uma verdadeira babel digital, em que todos falam o mesmo idioma, mas com decodificações imprevisíveis.

Talvez a rotina venha a lapidar comportamentos e promover melhorias nessa comunicação, já que se perde conteúdo das falas nesses encontros virtuais com muita participação verbal. No entanto, se ainda não ensinamos um burro a baixar as orelhas enquanto o outro fala, pode levar tempo até que o animal aprenda a utilizar o microfone adequadamente.

Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação e da cibercultura. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018) e pesquisador associado ao ESPM MediaLab.