— Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou morrer. (...) Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
— Venho. (...) Não fale em morrer, Capitu! Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me e li: mentiroso.
Neste diálogo de “Dom Casmurro”, romance de Machado de Assis, a jovem Capitu duvida das declarações de Bento Santiago, narrador da história com quem mantém um relacionamento complexo. Em outra parte da obra, Bentinho pondera sobre a disposição de mentir da moça: “Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração”.
Falar uma coisa e fazer outra não é, obviamente, hábito exclusivo de personagens da ficção. Com ou sem intenção, muitas declarações não passam disso, uma ideia, uma opinião ou uma mentira mesmo. Ainda que parta de uma autoridade, dizer algo não faz da fala um fato. Da mesma forma que ser autoridade não blinda a pessoa de ser ignóbil.
Ainda que essa realidade seja reconhecida por todos, não é raro encontrar na rede manchetes totalmente baseadas na fala de alguém, mas sem nenhuma referência crível. “A pandemia não chega aqui”, disse a cidadã. “Acabou a corrupção”, disse o político. “Vamos crescer 20% em dois anos”, declarou o ministro. “Agimos por legítima defesa”, afirmou um dos suspeitos.
Na comunicação social, o nome disso é “jornalismo declaratório”, prática condenada pela academia, mas que se espalha no ambiente virtual como uma praga. Trata-se de uma maneira barata de produzir conteúdo rasteiro sem nenhuma investigação adicional. O resultado é que o público acaba acreditando que aquela declaração é um dado checado pela reportagem. E a principal vítima é a credibilidade.
Há alguns dias, Daniel Bramatti - editor no Estadão e ex-presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) – refletiu sobre as matérias da cobertura das eleições nos EUA. Em seu Twitter, o jornalista comparou dois títulos: "Sem provas, Trump diz que ganhou a eleição" é quase tão problemático e acrítico quanto "Trump diz que ganhou a eleição".
De fato, utilizar “sem provas” na mesma frase em que se lê algo sabidamente inverídico não alivia a falácia da declaração. Ao contrário, acaba dando o benefício da dúvida para algo que nem notícia é. No caso específico, o título poderia dar conta de que o presidente candidato a reeleição perdeu, mas não aceita o resultado, por exemplo.
Se até no universo da literatura personagens duvidam das declarações alheias, é de se esperar que profissionais de comunicação também mantenham essa desconfiança em relação a figuras da vida real, que tendem a comportamentos bem menos nobres do que aqueles atribuídos a Capitu e Bentinho. Afinal, a tela aceita tudo, mas o bom jornalismo, não.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação e da cibercultura. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018) e pesquisador associado ao ESPM MediaLab.
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