Fundação Padre Anchieta

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Nunca tive diário, infelizmente. Se tivesse aderido aos registros regulares de acontecimentos e reflexões desde a adolescência, hoje teria acesso a lembranças que simplesmente não surgem naturalmente na memória. Adulto, fui mais ativo nos blogs e fotoblogs dos anos 2.000. Evidentemente, as coincidências entre as duas ferramentas terminam nos nomes, já que a primeira é voltada para “eu” enquanto a segunda mira “eles”.

Foi no final do Renascimento Europeu, lá pelo século 16, que o hábito de escrever diários se desenvolveu. A prática seguia a tendência humanista da época, em que o individualismo se projetou. Mas foi a partir do século 19 que essas escritas íntimas se consolidaram no formato que conhecemos, ou seja, encadernadas e não nas folhas soltas de antigamente. Essa nova tecnologia à época concebeu cronologia aos autores de “histórias de si mesmos”, como definiu o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).

Era uma grande honra quando algum colega permitia que folheássemos as páginas de seus diários, muitos trancados à chave. Tratava-se de prova de amizade, confiança, cumplicidade. Em geral, era uma oportunidade recíproca, em que só quem mantinha um diário poderia ler o do outro. Mesmo sem escrever um, fui agraciado pela distinção por duas vezes. Me recordo das pessoas que permitiram a bisbilhotice, mas nada do conteúdo. Por padrão, o que ia naquelas linhas era muito relevante somente para o autor.

Mais interessantes para leitores são as histórias baseadas em diários orais, que misturam fatos e ficção. Essas remontam à Antiguidade, como aquelas contadas pelo poeta grego Homero (928 a.C. - 898 a.C.), notadamente a Odisseia, que traz a narrativa não-linear das aventuras de Ulisses (Odysseus, em grego) após a Guerra de Troia, que teria acontecido no Mediterrâneo, na Idade do Bronze. Ou a renascentista “Os Lusíadas”, de Camões (1524-1580), obra que é motivo de orgulho para a Língua Portuguesa e tem narração igualmente não-linear.

Tanto na ausência de relação cronológica sequencial quanto na proposta de se contar algo para os outros, os dois poemas épicos citados como exemplos têm mais semelhança com outro tipo de diário, esse nosso contemporâneo: o blog ou “diário da rede” (tradução livre o nome original do serviço em inglês: weblog).

Os blogs se popularizaram na virada do século 21, quando a internet começava a virar plataforma interativa. Com redação fragmentada e nada íntima, essa nova tecnologia à época possibilitou encadeamento cruzado das histórias, exatamente em função do hipertexto, que o pesquisador francês Pierre Lévy define como “texto móvel”. Sim, há muito o blog deixou essa faceta de diário para se transformar em publicador de conteúdo em geral, mas essa é outra história.

A autoria personalista dos diários persiste nos blogs – e evoluiu também para as redes sociais mais populares. Mas a honra de permitir a poucos selecionados o acesso ao conteúdo ficou só no papel. No modelo de registro em rede, esferas pública e privada se confundem deliberadamente com o propósito de tornar real aquilo que experimentamos ou pensamos na intimidade, como descreveu a filósofa alemã Hannah Arendt (1906 – 1975): “A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”.

A fase atual de exposição - fotos de nossos lares, nossos animais de estimação, nossas reflexões culturais e políticas, planos e feitos – pode ser interpretada com um tipo de busca pela validação do público sobre um autêntico pessoal. Cria-se, assim, um ecossistema paralelo que só existe no mundo virtual. No entanto, como o mundo é um só – real e de viés, murmuraria Caetano Veloso – trata-se de uma esfera “meia genuína meia imaginária”, como um poema épico.

Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação e da cibercultura. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018).