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Reprodução/Site Alesp Com 10 metros, estátua de Borba Gato rasga o céu e a memória de SP

Na última terça-feira (23), o presidente Donald Trump afirmou em redes sociais que vandalizar monumentos ou estátuas federais nos EUA é crime com pena de até 10 anos na cadeia. Para tanto, recorreu a leis referentes à preservação da memória histórica. Com o anúncio, fez referência direta aos movimentos antirracistas que tomam conta das cidades do país que governa e que, em alguns casos, removem ou ameaçam remover estátuas dedicadas a personalidades do passado identificadas com atos racistas.

A cidade é um espaço político desde a etimologia da palavra, que vem de póli (do grego πόλη). Política (do grego πολιτικός) diz respeito aos acontecimentos sociais que impactam a póli, ou seja, as relações públicas que acontecem na cidade. O filósofo Aristóteles (385 – 323 a.C.) definiu o habitante desses lugares como um “animal político” (do grego ζώον πολιτικόν). Esse entendimento milenar indica que tudo o que acontece no espaço público é um ato político, o que inclui a instalação e a derrubada de estátuas e monumentos.

Quando grupos exercem seu legítimo direito de manifestação nas ruas das cidades é mais que um direito. É dever do cidadão garantir que a póli/cidade seja uma representação de anseios do conjunto de seus habitantes. Não tem nada a ver com vandalismo, portanto, que pessoas reivindiquem mudanças nos espaços públicos da forma que julgarem mais adequada. Especialmente quando se trata de justiça histórica, como a manifestação popular em relação ao preconceito racial e étnico em várias partes do mundo.

Mas a reflexão que emerge do calor dos protestos de rua precisa levar em conta qual é a estratégia mais oportuna para essa retratação. A imagem da estátua do traficante de escravos Edward Colston sendo derrubada e “afogada” na cidade inglesa de Bristol por uma multidão é, ao mesmo tempo, um alento e um desconforto. É um alento por ter trazido a discussão do racismo estrutural para a superfície. É um desconforto por ter submergido a memória da tragédia humana que foi a escravidão.

Não há aqui a pretensão de julgar conceitualmente - muito menos esteticamente - a movimentação de estátuas, algo que estaria mais ajustado às conclusões da professora Giselle Beiguelman, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Em 2019, a artista inaugurou duas instalações – Chacina da Luz e Monumento Nenhum - que dialogam com os eventos atuais ao propor o debate sobre a memória e o esquecimento no espaço público.

Também não é negar às ruas das cidades sua condição de “local adequado para a excelência humana”, como descreve a filósofa alemã Hannah Arendt (A condição humana, 1958). Mas parece ser conveniente para os nossos dias – com tanto negacionismo e truculência à solta - colocar as energias nos interesses compartilhados e desconectar a civilização da barbárie, daquele tipo que destrói patrimônio da humanidade por inadequação com suas crenças e posicionamentos pessoais.

Nas sociedades democráticas modernas, colocar ou remover coisas dos espaços públicos precisa ser pactuado. Em geral, as câmaras de representantes do povo se encarregam disso, seja por iniciativa própria ou por provocação externa. É o que acontece com nomes de ruas, por exemplo, que podem exibir racistas, homofóbicos, machistas e até criminosos sem que ninguém se dê conta.

Vez ou outra, um grupo se aborrece com a “homenagem” e atua para pedir mudança. Foi o que aconteceu com o Elevado Presidente João Goulart, o famoso Minhocão de São Paulo, que até junho de 2016 ostentava o nome do ditador Costa e Silva, que presidiu o Brasil de 1967 a 1969. A estátua gigante do bandeirante Manuel Borba Gato, no bairro paulistano de Santo Amaro, ainda não saiu de lá, mas há várias petições e abaixo-assinados nesse sentido, demanda de grupos antirracistas e da causa indígena. O fato é que a discussão arrastada por anos vem queimando o filme dos bandeirantes, antes tidos como heróis e que, aos poucos, têm sua índole genocida revelada.

Em muitos casos, a exposição do terror pode até ser mais eficiente do que seu desaparecimento. Imagine uma estátua em local público cuja placa a seus pés indique clara e destacadamente que se trata de um traficante de escravos ou de um ditador. Mas há outros casos em que o esquecimento deve ser a melhor solução mesmo, pois algumas figuras públicas – do passado e do presente – não têm nada a acrescentar à memória da sociedade.

Conduzido de maneira a permitir a discussão, o processo garante a justa revisão e pode manter a memória dos acontecimentos, das características de época. É dessa forma que gerações futuras poderão conhecer crimes e vergonhas praticados pelo “animal político” em épocas passadas para evitá-los em épocas futuras. Há muitos exemplos nesse sentido. Deveríamos derrubar o Coliseu romano, a arena em que cristãos eram devorados por feras sob aplausos do público nos séculos I e II d.C.? O campo de concentração de Auschwitz deveria ser apagado do mapa da Polônia depois da Segunda Guerra Mundial? E se os bizantinos tivessem destruído totalmente o Partenon, templo dedicado à deusa Atena, erguido no século V a.C. na Acrópole?

No Brasil - país que manteve seus irmãos africanos escravizados por mais de 300 anos -, há tempos se discute a criação de museus e monumentos que nos lembrem eternamente dessa vergonha. As iniciativas que existem são tímidas ou recolhidas, como o Parque Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que dedica vasta área ao ar livre à cultura afro-brasileira, mas com pouco empenho de divulgação dos governos e autoridades de turismo.

Talvez já tenha passado da hora de colocarmos tais espaços em perspectiva de destaque, nos centros das cidades preferencialmente, para garantir a memória e o aprendizado das gerações futuras. Um dos ensinamentos, inclusive, poderia combater o machismo por tabela. Todo cultuado em verso e prosa por seus feitos, Zumbi dos Palmares não foi o criador do famoso quilombo. Consta da tradição local que quem tornou o lugar uma comunidade de resistência foi Aqualtune, princesa do Congo escravizada no Brasil e avó materna de Zumbi.

Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018).