As adaptações no sistema de ensino exigidas pela pandemia de Covid-19 têm gerado críticas tanto do lado dos alunos e familiares quanto dos profissionais de educação. Muitos analistas falam em ano letivo perdido na rede pública, mesmo em localidades que adotaram o sistema de educação a distância (EAD). Na correria, pode até ser que algum conteúdo tenha se perdido. Mas, do ponto de vista do processo educativo houve, na verdade, um avanço - ainda que forçado - rumo a certa contemporaneidade tardia.
A crise não estava na conta dos educadores nem de ninguém, evidentemente. Foi um acidente de percurso que impôs soluções de última hora. Todas as iniciativas no sentido de evitar um apagão educacional são dignas de aplausos. Mas sem planejamento prévio, é de se esperar que as coisas não naveguem por um mar de rosas. No entanto, o aspecto que mais impactou o ensino neste primeiro semestre já era bem visível há décadas: tecnologia em rede.
Nos anos 1990 já se falava do novo milênio e de suas características de inovação provocadas pela internet, potencializadas pelos recursos da chamada Web 2.0, no início dos anos 2000, e pelos smartphones, a partir de 2007. Pois bem, a rede mundial se estabeleceu no Brasil há mais de 25 anos e o brasileiro virou um dos povos que mais consomem conteúdo e serviços online – segundo dados da Comscore, houve um aumento de 15% no tempo gasto na internet em maio deste ano em relação a 2019.
Mas, na primeira oportunidade em que a internet é demandada para algo realmente prioritário e em larga escala – como a educação –, o que se vê são respostas rudimentares de infraestrutura, fluência e aplicabilidade tecnológica. Cada uma das três agravadas pelo abismo social que separa a rede pública da rede privada de ensino. A conta pelo desleixo um dia chegaria.
Enquanto a educação do país perdia tempo com discussões sobre ideologia de gênero, escola sem partido e outras miudezas, o trem do desenvolvimento foi passando de forma rápida. Jovens das classes mais altas e que podem pagar pelos estudos pegaram os bons vagões, com laboratórios cheios de computadores, aulas multimídia e pedagogia voltada para competências. Já a maioria pobre pegou vagões lotados e sem equipamentos, quando conseguiu pegar algum trem com professor dentro.
E mesmo na primeira classe da viagem, os caros acessos por banda larga e redes móveis se mostraram incapazes de dar conta do recado. Com conexões meia boca e de telas pequenas, o brasileiro virou um grande consumidor de internet, mas não consegue pôr em prática trabalhos e estudos mais sofisticados. Imagine aprender trigonometria a partir da tela de um smartphone, cuja conexão cai ou trava a cada 5 minutos.
Vale ressaltar que 60% dos domicílios brasileiros não contam com computador, segundo a pesquisa TIC Domícílios 2019. Conheço escolas de primeira linha em São Paulo que tiveram que emprestar notebooks para professores e alunos, que não tinham os equipamentos em casa.
Não se trata de querer resgatar o determinismo tecnológico tal como proposto por Marshall McLuhan (1911 – 1980), mas de reconhecer que infraestrutura é essencial para as comunicações em rede e que sabíamos disso há tempos. Só não fomos capazes de prover ou de cobrar que se provesse, ignorando a face antropológica dessa realidade, como alerta o pesquisador Pierre Lévy (“Ciberdemocracia”, 2002). Chegou a fatura.
Mesmo aqueles grupos cuja infraestrutura atende ao propósito do EAD dos filhos, no outra lado da tela encontram professores que nunca viram os softwares e sistemas que devem utilizar para cumprir sua importante missão. Não saber lidar com programas ou não saber como adaptar aulas presenciais para o aprendizado remoto parece ser a regra nas escolas públicas, que abrigam cerca de 12 milhões de jovens.
Por anos, foi mais fácil negar o iminente avanço da EAD - atribuindo a esse tipo de ensino uma qualidade ruim - do que promover capacitação e incentivo para que professores e alunos dedicassem parte de seu tempo a esta modalidade e, quem sabe, ajudassem a elevar a qualidade. O professor finge que ensina, mas o aluno não tem como fingir que aprende. Chegou outra fatura.
Muitas redes de ensino se valem de programas de gigantes da tecnologia – como Google e Apple -, que sem o uso adequado são inócuos, de baixíssimo aproveitamento. Tem professor que prefere gravar uma videoaula no Youtube, como se fosse um influencer. Com a faca do tempo no pescoço, pega tudo e põe no vídeo ou na rede social, só celular na mão e uma ideia na cabeça.
Sem falar que são softwares pensados e desenvolvidos para a realidade de sociedades com menos desigualdades e mais desenvolvidas tecnologicamente. O atraso em reagir à mudança que a internet estava promovendo impactou também pesquisas nacionais. Nossos educadores e estudantes viraram agentes passivos nessa trajetória, como se só lhes fosse permitido usar e nunca criar. Chegou mais uma fatura.
Como sempre acontece quando as faturas se acumulam sobre a mesa, resta agora dar uns pulinhos e liquidar parte delas para a vergonha não ser gigante. No final, toda a correria e adaptação serviu para mostrar que EAD é ótima alternativa para muitos cursos e inútil para outros tantos. Mas que desembarcou por aqui faz tempo e veio para ficar.
Ricardo Fotios é jornalista, professor universitário e pesquisador de temáticas relacionadas ao uso de tecnologias no ecossistema da comunicação. É autor de Reportagem Orientada pelo Clique (Appris, 2018).
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