O caso é visto com preocupação pela Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm). "É uma atitude lastimável. Isso é crime de ética. A própria Associação Médica Homeopática Brasileira não tolera isso e apoia o calendário de vacinação", critica Isabella Ballalai, vice-presidente da SBIm que integra o grupo consultivo Vaccine Safety Net, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Com mais de 186 mil mortes por covid-19 e com a perspectiva de frear a pandemia com alguns imunizantes em negociação, o Brasil vê a resistência à vacina crescer. Segundo levantamento do Instituto Datafolha, o percentual de brasileiros dispostos a se vacinar contra a doença caiu de 89% na primeira quinzena de agosto para 73% em dezembro, e cresceu de 9% para 22% a parcela de pessoas que declaram que não querem tomar vacina.
O potencial estrago de um movimento antivacina é conhecido. Em todo o mundo, estima-se que a imunização contra doenças salve cerca de 3 milhões de pessoas por ano, ou seja, 5 pessoas a cada minuto.
"Desconfiar das vacinas ou não aderir às campanhas pode levar a perdas irreparáveis", afirma Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da força-tarefa da universidade no combate à covid-19.
Diante desse cenário, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quinta-feira (17/12) que estados e municípios podem criar leis de obrigatoriedade da vacina contra o coronavírus e definir restrições a quem desobedecer. O resultado foi criticado pelo presidente Jair Bolsonaro, que já disse publicamente que não irá se vacinar e pretende exigir termo de responsabilidade de quem tomar vacina.
"É um cenário muito difícil. Precisamos de falas de confiança que sejam coerentes com o que a ciência diz. E a ciência está sendo atropelada no Brasil durante toda essa pandemia", critica Ballalai.
Para SBIm, posicionamentos equivocados como o de Bolsonaro minam a confiança da população e servem como combustível para os que se negam a receber vacinas.
A volta do sarampo
Antes mesmo da chegada da pandemia, o crescente movimento antivacina já tinha efeitos no Brasil. Considerado um modelo para o mundo pela capacidade de promover vacinação em massa, por meio do Programa Nacional de Imunização (PNI), o país passou a registrar retrocessos.
A volta do sarampo, doença viral que ataca o trato respiratório e é potencialmente grave em crianças menores de cinco anos, é um exemplo. Depois de dois anos de certificação de erradicação dado pela Organização Panamericana de Saúde (Opas), o Brasil sofreu com um surto do vírus em 2018 e perdeu, no ano seguinte, o status.
Em 2019, foram mais de 18 mil casos confirmados e 15 mortes por sarampo. Naquele ano, a meta de vacinação ficou longe de ser alcançada. Entre crianças de 2 a 4 anos foram 100.676 doses aplicadas - contra 824.190 não vacinados.
"Um pouco dessa queda da cobertura se deve ao movimento antivacina. Mas as pessoas também pensam que as doenças desapareceram. Elas não veem [as doenças] porque são as vacinas que justamente protegem as pessoas", argumenta Dias.
Uma parte dessa hesitação, alega Dias, é muito influenciada por curas naturais, por uma vida livre de química, já que vacinas são produtos sintéticos, como medicamentos.
"Quando nascemos, a gente adquire uma imunidade inata do leite materno, que defende a gente de boa parte das doenças. Mas não das fatais, como poliomielite, caxumba, rubéola", explica o químico, pontuando que, só no século passado, 350 milhões de pessoas no mundo morreram de varíola, que foi erradicada por causa da vacina.
"Sou a favor de hábitos saudáveis de alimentação. Eles ajudam, mas não defendem a gente da covid-19", acrescenta.
O combate ao vírus da desinformação
Mariana começou a questionar o uso de vacinas após ouvir os argumentos do médico homeopata que trata a família, há sete anos, quando o primeiro filho nasceu. "Ele falou sobre interesses econômicos das farmacêuticas e dizia que doenças infantis ajudam a amadurecer o corpo da criança", diz.
As informações que ela recebe vêm principalmente de páginas secretas numa rede social, traduzidas de outras línguas. Por outro lado, ela confessa que não checa tudo o que lê.
Ballalai, que é pediatra, diz que a maior parte do conteúdo que alimenta os grupos antivacinas vem de fora. "Cerca de 50% das informações difundidas aqui são importadas da Europa e Estados Unidos", pontua a médica.
Os dados fazem parte de uma pesquisa divulgada em 2019 pela Avaaz e a SBIm com o objetivo de investigar o elo entre a desinformação e a queda nas coberturas vacinais. A pesquisa, feita pelo Ibope com uma amostra de 2.002 pessoas, mostrou ainda que sete em cada dez brasileiros acreditam em alguma informação falsa relacionada a vacinas.
Do total de entrevistados, 13% disseram que não se vacinaram ou não vacinaram uma criança sob seus cuidados. Entre os motivos estão falta de planejamento ou esquecimento; argumentos como "não achei que a vacina fosse necessária", o que a SBIm considera desinformação; falta de informação e medo de efeitos colaterais graves - algo que também é considerado desinformação.
"Percebemos que a rede que dissemina a desinformação é bem formada, é profissional. E com o cenário que a gente está vivendo hoje, de negação da ciência e disputa política, isso está piorando", avalia Ballalai.
Imunidade coletiva
Para Dias, da Unicamp, a atuação do movimento antivacina é "absolutamente irresponsável, criminosa", principalmente em meio a uma emergência mundial. "Covid-19 não é uma questão individual, é uma questão de saúde coletiva. Se não tivermos uma imunização em massa, nós não atingiremos uma imunidade coletiva necessária", afirma o pesquisador.
Embora o plano nacional de vacinação contra covid-19 ainda não tenha uma data para o início da imunização, a SBIm alega que esta é a única possibilidade de controle da pandemia.
"As vacinas vêm principalmente para diminuir mortes, hospitalizações e casos graves. Mas não será o fim da doença, 2021 será ainda um ano de distanciamento social, de não aglomeração e uso de máscaras", ressalta Ballalai.
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*Nome fictício usado na reportagem a pedido da entrevistada.
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