Em 28 de maio de 1961, o London Observer publicou "Os prisioneiros esquecidos", da autoria do advogado inglês. Passando os olhos pelos jornais da manhã, ele vira a história de dois estudantes portugueses, presos após fazer um brinde à liberdade num restaurante. Na época, Portugal era governado pelo ditador António de Oliveira Salazar.
Indignado com a detenção, em seu artigo Benenson exigia a libertação dos jovens e urgia os leitores a escreverem cartas ao governo português. Mas ele não parou por aí, e listou outras violações dos direitos humanos por todo o mundo.
Mudança gradual de foco
Benenson cunhou o termo "prisioneiros de consciência" para indicar a provação de "qualquer pessoa que seja fisicamente impedida (por aprisionamento ou outros) de expressar [...] qualquer opinião que tenha honestamente, sem que advogue ou compactue com a violência pessoal".
A campanha do britânico, Apelo por Anistia 1961, foi a precursora de fato da futura Anistia Internacional (AI). O foco inicial da organização, prisioneiros esquecidos, gradualmente se expandiu, como parte de sua evolução, "de mandato para missão".
Nos anos 70, ela se concentrou no tratamento dos prisioneiros em diversas ditaduras latino-americanas, lançando campanhas contra a tortura e a pena de morte. Por sua atuação contra a tortura, em 1977 recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Novos desafios emergiram nos anos 80, entre as quais execuções extrajudiciais e de fundo político, e desaparecimentos forçados. No fim da década, a organização voltou sua atenção para o número crescente de refugiados por todo o planeta.
Nos anos 90, a Anistia Internacional se especializou em conflitos armados, revelando atrocidades no Timor Leste, Ruanda e a antiga Iugoslávia. A partir do ano 2000, houve uma mudança de foco, no sentido de desvendar e escandalizar injustiças econômicas e sociais, originárias da crescente globalização.
Relevância e outras controvérsias
O impacto do trabalho da AI em seus primeiros 30 anos foi muito diferente do que ela tem e poderia ter hoje em dia, afirma Anja Mihr, diretora de programas do Centro Humboldt-Viadrina, de governança através de direitos humanos, e ex-presidente da AI Alemanha.
"Em seus anos iniciais, a Anistia Internacional desenvolveu os mecanismos para despertar consciência, alertando os governos e o público através de campanhas de envio de cartas. Assim, durante esses primeiros 30, 40, talvez 50 anos, não importava muito se, com suas ações, ela geraria uma reação direta dos governos."
Naturalmente o mundo mudou radicalmente desde então, em especial devido à globalização e à era da tecnologia de informação. "Não estou sempre segura se o forte da Anistia, de realizar boa pesquisa, obter provas, ainda é necessário na mesma medida hoje, quando temos muitas outras entidades [que fazem esse trabalho]. Não precisamos mais de uma ONG para nos dizer o que está acontecendo em Mianmar, na China, ou em outras partes", ressalva Mihr.
De qualquer modo, a trajetória da AI nestas seis décadas não tem sido livre de obstáculos. Ela afirma não seguir ideologias políticas nem "apoiar ou opor-se a qualquer governo ou sistema". No entanto, é justamente isso o que seus detratores acusam de fazer. Tem havido alegações de que seus relatórios seriam unilaterais, ou que ela não trataria ameaças à segurança como fator atenuante.
Um mundo mais complexo
Parte do problema é que a ONG estaria parada no tempo, afirma Stephen Hopgood, professor de relações internacionais da Universidade SOAS de Londres: "A Anistia é uma organização da era da Guerra Fria e, pelo modo como foi criada e como tem funcionado, é um milagre ter sobrevivido por 60 anos, em diversos aspectos. Não é necessariamente uma falha da parte dela, é antes a complexidade inevitável de um mundo muito diferente daquele dos anos 60 e 70."
As críticas mais fortes se referem a seu suposto viés na política externa, seja contra países não ocidentais, seja contra aqueles apoiados pelo Ocidente. Contudo Hopgood, autor do livro Keepers of the flame: Understanding Amnesty International (Guardiães da chama: Entendendo a Anistia Internacional), acha que esse tipo de avaliação tem que ser colocado na perspectiva do tempo.
"Ela foi uma das poucas organizações internacionais a fazer campanha sob o princípio da liberdade de expressão. E tentou fazer isso da maneira mais neutra, mais justa possível, destacando prisioneiros de consciência do Ocidente, do Oriente e dos países em desenvolvimento [...] De muitos pontos de vista, era uma época muito simples, quando a Anistia podia ver quem era o inimigo – que eram os governos autoritários por toda parte."
A política de neutralidade e de assumir uma posição sem partidarismo se tornou cada vez mais difícil de manter, devido aos complexos desafios contemporâneos, afirma o especialista em política internacional do humanitarismo e dos direitos humanos.
"Tomemos a recente guerra entre o Hamas e Israel: se você adotar o que pensa ser uma posição neutra, uma reação seria dizer que é terrível civis inocentes serem feridos, de qualquer modo. Mas quem é fortemente pró-Israel ou pró-palestinos acha que isso é ficar do lado do inimigo: quem não está conosco é contra nós. Como as posições podem ser iguais, se Israel tem armas tão mais poderosas e controle tão maior?"
Capacidade de adaptação em ambiente tóxico
Essencialmente houve uma mudança em relação a uma era em que os direitos humanos eram vistos como neutros, em situações de conflito e guerra, ou em que se julgava com outros critérios o modo como certos governos tratavam seus cidadãos. E, até certo ponto, isso não é mais aplicável ao mundo de hoje, segundo certos analistas.
"Esse mundo foi superado pela mobilização popular em torno de toda uma gama de questões profundamente problemáticas e complexas, como sexo ou aborto. [...] Em muitos casos, ambos os lados evocarão os direitos humanos como parte de sua posição ideológica ou ética", exemplifica Hopgood.
Além disso, um relatório publicado em 2019 acusava a AI de manter um ambiente de trabalho "tóxico", com casos de bullying, humilhação pública e discriminação. Tais problemas costumam ser inerentes a organizações complexas e burocráticas que reúnem gente com perspectivas e éticas diversas afirma Hopgood. Em seu livro, ele descreve como sacrifícios pessoais por uma boa causa podem ter um preço alto, especialmente se falta um ambiente de trabalho sustentador.
"Havia quem passasse dois meses entrevistando prisioneiros em condições de cárcere horrendas, que tinham sido torturados, e aí voltava, e ninguém da organização central queria saber do assunto. Você é forçado a engolir a carga de dois meses de tortura, redigir e publicar. E tem que viver com a consciência de que, para cada vítima de tortura por que você faça algo positivo, existem dezenas de milhares de outras."
"E se, depois de tudo isso, você vai tomar um drinque no bar ao lado da prisão em que há gente sendo torturada, a carga é terrível", prossegue o especialista em direitos humanos. "Acho que a Anistia Internacional é um bom exemplo desse tipo de cultura profundamente ética, mas profundamente problemática."
Ainda não se pode prever como a ONG atravessará seus próximos 60 anos, já que seu papel será definido pela paisagem política em que se encontrar.
"Como podemos ter o maior e mais forte impacto? Ainda é despertando as consciências? Ainda é apelando principalmente aos governos?", questiona Anja Mihr "Os responsáveis por violações dos direitos humanos e os que podem mudar a situação no local, em favor dos direitos humanos, ainda são os mesmos protagonistas de 20, 40 anos atrás? Eu diria que não. Acho que o cenário mudou. E assim os métodos da Anistia Internacional têm que se adaptar à situação atual."
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