O que está por trás da crise no Cazaquistão


Roman Goncharenko

06/01/2022 12h34

Alta no preço do gás foi estopim para protestos que levaram à renúncia do governo num dos principais aliados da Rússia na região. Agora o Estado, antes visto como estável, parece prestes a desmoronar.Nada indicava o surgimento de uma crise profunda no Cazaquistão, mas subitamente a ex-república soviética da Ásia Central se tornou palco de protestos violentos. Dezenas de pessoas foram mortas na repressão aos protestos, e a reputação do país como uma nação pacífica e apenas moderadamente autocrática sofreu um golpe.

Tudo começou no domingo passado (02/01) e evoluiu muito rapidamente. Várias centenas de pessoas saíram para protestar na cidade de Zhanaozen, no oeste do Cazaquistão, contra o aumento do preço do gás liquefeito de petróleo (GLP). Desde então, a onda de protestos se espalhou por todo o país, com milhares aderindo às marchas.

Na quarta-feira, manifestantes também saíram às ruas de Almaty, a antiga capital e cidade mais populosa do país. Um palácio presidencial foi incendiado. Houve relatos de manifestantes invadindo prédios municipais, veículos da polícia incendiados, tiros e até explosões. O aeroporto de Almaty foi tomado, e todos os voos, cancelados.

Numa ação surpreendente, o presidente Kassym-Jomart Tokayev se mostrou compreensivo e prometeu resolver os problemas que estão gerando os distúrbios. O governo interino renunciou, e Tokayev declarou estado de emergência nas regiões mais afetadas do país.

Nesta quinta-feira, o presidente anunciou que vai reintroduzir um limite no preço do gás por ao menos seis meses para "estabilizar a situação socioeconômica".

Embora a situação permaneça obscura, uma coisa é certa: nunca antes o Cazaquistão, há muito considerado uma autocracia estável, se viu envolvido numa crise política de tamanha proporção. Suas repercussões provavelmente serão sentidas em toda região. Afinal, a antiga república soviética da Ásia Central é um aliado estratégico da Rússia e vende a maior parte das suas exportações de petróleo para a China, dois países seus vizinhos.

Preços em alta e falta de energia

A atual onda de protestos originou-se em Zhanaozen, mesmo local onde, dez anos atrás, eclodiram violentos distúrbios depois que petroleiros entraram em greve.

Segundo o governo, 13 agentes de segurança foram mortos, e os corpos de dois deles foram encontrados decapitados. Segundo a polícia local, "dezenas de terroristas", como as autoridades cazaques descrevem os manifestantes, foram mortos nas primeiras horas da manhã desta quinta quando tentavam atacar sedes do governo. O número exato de fatalidades não foi divulgado.

Se dez anos atrás a agitação começou devido aos baixos salários, desta vez o motivo foi um aumento acentuado no preço do GLP. Usado por muitos cazaques para abastecer seus carros, o gás dobrou de preço na virada do ano. O governo, que já renunciou, justificou a alta com o aumento da demanda e cortes na produção.

Embora esse tenha sido o estopim dos atuais protestos, o Cazaquistão há muito enfrenta uma série de problemas, especialmente no setor de energia. No ano passado, por exemplo, não conseguiu gerar eletricidade suficiente, levando a paralisações de emergência. O país teve que contar com a Rússia para compensar as falhas de energia. Agora, planeja construir sua primeira usina nuclear.

O custo dos alimentos aumentou tão drasticamente que, no outono passado no hemisfério norte, o governo proibiu a exportação de gado e outros animais menores, além de batatas e cenouras.

Fim de três décadas de governo

A crise atual chega num momento em que o Cazaquistão se encontra numa encruzilhada política. Por três décadas, na era pós-soviética, o país foi governado por Nursultan Nazarbayev, hoje com 81 anos. Antes disso, durante a época comunista, ele foi primeiro-ministro da República Socialista Soviética do Cazaquistão e presidente do Partido Comunista do Cazaquistão.

Seu governo autoritário deixou uma marca no país, mas Nazarbayev também conseguiu atrair investimentos ocidentais no setor de petróleo e gás e, assim, gerar certa riqueza para o povo.

Além disso, Nazarbayev também mudou a capital de Almaty, no sul do país, perto do Quirguistão, para a cidade de Astana, que foi rebatizada de Nur-Sultan em sua homenagem.

Ele anunciou a renúncia da presidência em março de 2019, citando problemas de saúde como um dos motivos. Observadores, porém, presumem que ele queria, acima de tudo, assegurar seu legado.

Kassym-Jomart Tokayev tornou-se o novo presidente do país — mas Nazarbayev manteve importantes cargos até recentemente. Como "Jelbasy" (líder da nação), o ex-presidente permaneceu como chefe do poderoso conselho de segurança e do partido governante, o Nur-Otan.

Foi somente em novembro de 2021 que Nazarbayev anunciou que também entregaria a liderança do partido a Tokayev, de 68 anos. Na quarta-feira, Tokayev assumiu o cargo de chefe do Conselho de Segurança, em meios aos protestos.

Moscou monitora a crise

O plano de Nazarbayev para uma transferência gradual de poder está agora sob pressão e será observado de perto por outras ex-repúblicas soviéticas e sobretudo pela Rússia. O Cazaquistão é considerado o segundo aliado mais próximo de Moscou na região da Eurásia, atrás apenas de Belarus.

Após os protestos da oposição em Belarus, em 2020, a Rússia vê agora outro importante aliado estremecer.

Em 2010, Rússia, Belarus e o Cazaquistão fundaram uma união aduaneira, um ambicioso projeto de integração do presidente russo, Vladimir Putin. Isso resultou posteriormente na União Econômica Euroasiática (UEE), em 2015, à qual também pertencem a Armênia e o Quirguistão.

Putin e Nazarbayev mantêm uma relação muito próxima e se encontraram pela última vez em dezembro, na reunião das ex-repúblicas soviéticas, em São Petersburgo. Até agora, Moscou reagiu com cautela à crise no Cazaquistão. O Ministério do Exterior russo pediu diálogo.

Tokayev decretou o estado de emergência em todo o país e pediu o envio de uma força da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), uma aliança militar fundada em 1992 e que reúne a Rússia e mais cinco ex-repúblicas soviéticas: Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. A organização anunciou o envio de militares para "estabilizar e normalizar a situação" no território cazaque.

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