Para a pesquisadora, o processo de radicalização é longo e diário. "Hoje a pessoa não precisa procurar por um conteúdo extremista que leva à radicalização. Chega à palma de sua mão. Os grupos estão usando técnicas de convencimento para disseminar ideias sepultadas pela História. Os negacionistas do Holocausto são um exemplo", afirma em entrevista à DW Brasil.
Em seu livro, Prado fala sobre conceitos e ideias que permeiam pensamentos e ações da ultradireita, faz um histórico do movimento transnacional de extrema direita que levou o presidente Jair Bolsonaro ao poder e apresenta influenciadores que fomentam discursos de ódio, teorias da conspiração e desinformação.
A obra, lançada há um ano, será ampliada nos próximos meses com a inclusão de dois capítulos, um sobre a direita radical religiosa e outro sobre a direita liberal brasileira que não é liberal, nas palavras da autora.
Seu próximo projeto é o "Stop Hate - Brasil”, site com entrevistas, artigos, pesquisas e manuais de prevenção ao extremismo, inspirado em iniciativas internacionais, como a Apabiz, entidade alemã que funciona como arquivo de imprensa e de educação antifascista.
Na entrevista a seguir, ela fala também sobre as diferenças entre a direita radical e a extrema direita e sobre o futuro do olavismo sem Olavo de Carvalho.
DW Brasil: Como você se posiciona ideologicamente?
Michele Parado: Desde de quando eu voto, sempre estive mais à direita, sempre votei no PSDB, nunca no PT. Eu e outras pessoas que, por não votarmos no PT, éramos patrulhadas por petistas e chamados de nazistas, de fascistas. Esse grupo começou a se encontrar no Orkut e depois no Facebook. Um movimento orgânico, a partir do qual a nova direita começou a surgir. Achava-se que se tratava não de uma direita radical e extrema, mas de uma direita moderada e democrática. Eu consumia todo aquele conteúdo e fiz amizades.
E quando você detectou radicalização dentro desse movimento?
Antes de 2018 eu já vinha percebendo uma radicalização. Mas, no ano das eleições presidenciais, quando fui incluída em um grupo de Whatsapp chamado Internet Livre, formado por muitos influenciadores e alunos de Olavo de Carvalho, notei que tinha algo de errado. E coisas ditas ali eram incompatíveis com a democracia.
Foi quando você resolveu iniciar sua pesquisa?
Sim. Acabei me desentendendo com a maioria e resolvi começar a pesquisar o que era essa direita que se passava como moderada e democrática, mas o discurso era outro. Eu lia muitas análises sobre extremismo, mas, na minha visão de dentro [do movimento], muitas pontas ficavam soltas. Aí comecei a pesquisar.
Pesquisei durante dois anos e escrevi o livro em três meses. Depois, contratei uma editora de autopublicação e investi cerca de R$ 50 mil nas duas tiragens e no site que criei para comercializar os livros. A primeira edição foi vendida, mas a segunda ainda estou pagando. As vendas caíram depois que passei a ser atacada por influenciadores de direita, grupos de esquerda e até por acadêmicos que não gostaram do livro porque teria sido escrito por uma "outsider”.
E esses ataques continuam?
Continuam, principalmente de grupos de direita. Recentemente, o coordenador nacional do Movimento Brasil Livre (MBL), Renan dos Santos, sugeriu o meu assassinato durante um vídeo. Fez em tom de piada, uma estratégia da ultradireita para não ser responsabilizada, mas já acionei meu advogado.
E como você define a nova direita brasileira?
A nova direita que surgiu no Brasil tem pouco de direita moderada e de centro direita, aquela que preserva os princípios da democracia liberal. Um termo que a define bem é o far right porque engloba tanto a direita radical quanto a extrema direita. E a nova onda far right não é mais formada somente por homens brancos, carecas, musculosos, com suásticas tatuadas. São também profissionais da mídia, produtores de conteúdo digital, filósofos e historiadores. É um fenômeno global e transnacional, com grupos de diversos países se comunicando.
Qual a diferença entre a direita radical e a extrema direita?
A direita radical convive com a democracia liberal e não defende a ruptura para implantação de regime autocrático. Já a extrema direita rejeita completamente a democracia liberal e busca uma forma autocrática de governo. No Brasil, o MBL representa a direita radical. O movimento é disruptivo, ataca o direito das minorias e enxerga o debate político sob a perspectiva do amigo-inimigo. Já o bolsonarismo rejeita totalmente a democracia liberal e deseja a ruptura. Mas ambos atacam diariamente os princípios que sustentam uma democracia saudável.
Os dois grupos estiveram juntos em 2018 para eleger Bolsonaro…
Sim, mas as divergências entre eles começaram bem antes das eleições. Logo no início do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, houve uma disputa entre o pessoal do MBL e o grupo de seguidores de Olavo de Carvalho, além do próprio escritor. Olavo sempre quis uma ruptura, pedia para fechar o Congresso, cassar a chapa Dilma/Temer. Já o MBL pedia a saída de Dilma pelas vias constitucionais, o impeachment. Durante as eleições, os dois apoiavam Bolsonaro contra o PT e até ficaram juntos em pautas econômicas, como a reforma da Previdência. Mas agora estão separados, com o MBL apoiando o ex-juiz Sérgio Moro. Mas acredito que os dois estarão juntos no segundo turno. Não há muita diferença entre os dois candidatos. Moro é um avatar. Ele mimetiza o discurso do bolsonarismo de maneira mais palatável e com a voz mansa.
Olavo de Carvalho, morto em janeiro deste ano, é um personagem importante de seu livro. Como fica o olavismo sem Olavo?
Seus seguidores o transformaram em um popstar, em um santo. É quase uma seita. E ele deixou como herança uma fábrica de pequenos Olavos. Desses, destacaria o Ítalo Marsili [médico que chegou a ser cotado para o Ministério da Saúde após a saída de Nelson Teich] e Filipe Martins [Assessor Internacional do Presidente da República]. Muitos vão faturar promovendo cursos e ampliando o número de seguidores nas redes, mas acho difícil ter "o" substituto de Olavo.
E como você vê o movimento de extrema direita hoje no país?
O processo de radicalização é longo e diário. Hoje a pessoa não precisa procurar por um conteúdo extremista que leva à radicalização. Chega à palma de sua mão. Os grupos estão usando técnicas de convencimento para disseminar ideias sepultadas pela História. Os negacionistas do Holocausto são um exemplo. Lançam uma ideia, como a legalização de partidos nazistas, com intuito de chocar e iniciar um debate. Com a repetição, as pessoas vão normalizando o tema, que seria impensável discutir até mesmo em uma mesa de bar.
Em artigo recente você afirma que a tempestade ideológica apenas começou e que extremistas estão infiltrados em instituições militares. Qual é o perigo desse movimento?
O perigo mais imediato é essas crenças cooptarem mais agentes de forças policiais e militares e, desta forma, contaminar as corporações. Forças armadas são sempre um objetivo a ser conquistado por recrutadores extremistas e radicais, seja para copiar as estruturas hierarquizadas e formar um grupo paramilitar para vigilantismo [grupos de justiceiros]; para acesso a armamento ou até mesmo para recrutar aqueles que já dispõem de treinamento militar. Para as sociedades, as consequências dessa infiltração podem chegar ao cotidiano, pois são agentes da lei e que dispõem da institucionalidade do uso da força. Visões extremistas que desrespeitam a dignidade humana podem refletir em abusos de autoridade praticados por esses agentes. Em casos mais extremos, podemos ver surgir milícias políticas paramilitares dispostas ao vigilantismo e ao extremismo violento ideologicamente motivado, semelhantes às muitas milícias políticas existentes nos EUA, como a Oath Keppers e a 3%, ambas com muitos veteranos das forças militares. As duas participaram da invasão ao Capitólio em janeiro de 2021 para impedir a posse de Joe Biden. Em São Paulo, também no ano passado, o coronel Aleksander Lacerda [então comandante de batalhões da Polícia Militar de São Paulo] foi exonerado depois de convocar manifestação contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
E o que deveria ser feito?
Temos que seguir o exemplo dos Estados Unidos e, principalmente, o da Alemanha e investir no monitoramento, na prevenção da radicalização e no combate ao extremismo. Em 2021, por exemplo, o governo alemão publicou um manual para a prevenção do extremismo, com 756 páginas. Outros centros de pesquisa, como o Peril [Laboratório de Pesquisa sobre Polarização e Extremismo] da American University de Washington DC, atua na produção de pesquisas, intervenções e ideias de educação pública para reduzir a crescente polarização e a radicalização extremista especialmente entre jovens. A prevenção da radicalização é cada vez mais urgente, especialmente a radicalização online. Estou criando um site, o Stop Hate - Brasil. Mas é uma iniciativa individual, o ideal é que outras esferas da sociedade civil se envolvam no propósito de prevenir a radicalização, assim como a esfera governamental e partidos políticos. Se não houver uma abordagem multissetorial dificilmente conseguiremos evitar a escalada da radicalização.
REDES SOCIAIS