O ataque destruiu todo o departamento de otorrinolaringologia, diz o cirurgião Andriy Khadzhynov, de 48 anos. O hospital estava cheio de pessoas, incluindo médicos, pacientes e muitos civis que haviam procurado abrigo no local, conta o médico, tentando conter as emoções após o trauma.
A pequena cidade de Volnovakha, na região de Donetsk, no leste da Ucrânia, tem pouco mais de 20 mil habitantes. O hospital é a única instalação médica de emergência para aproximadamente 100 mil pessoas em um raio de 50 quilômetros.
"O hospital está localizado em uma colina e pode ser visto facilmente de todos os lados", diz Khadzhynov, descrevendo como era o único prédio de três andares na área. Renovações na fachada do hospital feitas há dois anos fizeram com que o prédio se destacasse em relação às fábricas abandonadas no antigo coração industrial que o cercava.
Para o médico, é improvável que o primeiro ataque tenha sido um acidente. Dois dias depois, os bombardeios continuaram. A esposa e a filha de Khadzhynov também buscaram abrigo no local, junto com centenas de outros civis. Os ataques que se seguiram deixaram o hospital em ruínas.
Crimes de guerra
Ataques a instalações médicas há muito tempo são considerados crimes de guerra. O direito humanitário internacional proíbe explicitamente os ataques a hospitais, sejam eles direcionados ou indiscriminados.
Na Ucrânia, tais ataques não só afetaram o atendimento médico de civis, mas também levaram à morte de dezenas de médicos e pacientes, de acordo com dados anônimos publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A unidade de jornalismo investigativo da DW examinou detalhadamente 21 ataques a instalações médicas durante a guerra na Ucrânia, incluindo o bombardeio ao hospital de Volnovakha nos primeiros dias do conflito.
Esse número é apenas uma fração das 91 agressões à infraestrutura de saúde até agora confirmados pela OMS, o que representa uma média de dois ataques a hospitais, ambulâncias ou depósitos de suprimentos médicos por dia. Ao menos 73 pessoas morreram.
O Centro de Saúde Ucraniano, um think tank independente, forneceu à DW acesso a material confidencial, incluindo um registro de mais de 100 ataques a instalações médicas (no momento da publicação). De acordo com o centro, os números são ligeiramente superiores aos da OMS porque a entidade tem uma rede nacional de fontes locais que podem relatar ataques à medida que eles acontecem.
"Estamos documentando ataques a instalações médicas de acordo com os altos padrões de procedimentos legais nos tribunais internacionais porque queremos que estes ataques sejam julgados e que os responsáveis sejam responsabilizados", diz Pavlo Kovtoniuk, ex-vice-ministro da Saúde e cofundador da organização.
Embora os ataques a instalações médicas sejam proibidos pela Convenção de Genebra, há uma condição sob a qual os hospitais podem perder seu status protegido de objetos civis: se a instalação for utilizada para fins militares.
Em busca de julgamento justo
Mariupol já estava sitiada há quase duas semanas quando aviões de guerra russos bombardearam o hospital infantil e a maternidade da cidade, em 9 de março. O mundo ficou chocado com as imagens de mulheres e crianças sendo resgatadas dos escombros. Algumas delas morreram.
Antes e depois do ataque, porém, autoridades russas haviam afirmado que o hospital era um alvo legítimo, alegando que um batalhão ucraniano estava operando no local.
A DW investigou as alegações analisando vídeos, fotos e imagens de satélite, e não encontrou nenhuma indicação de que houvesse alguma unidade militar dentro do hospital de Mariupol. A DW também falou com testemunhas e analisou material visual em 20 outros ataques a instalações médicas e, novamente, não encontrou nenhuma indicação de que houvesse alvos militares legítimos ou combatentes nas instalações atacadas.
As Forças Armadas russas têm repetidamente afirmado que os hospitais que destruíram na Ucrânia estavam sendo usados para fins militares.
O juiz alemão Wolfgang Schomburg, que tem experiência em tribunais penais internacionais no âmbito de atrocidades cometidas durante a dissolução da Iugoslávia e o genocídio de Ruanda, disse à DW que o julgamento de tais casos é muitas vezes um processo demorado.
Um julgamento justo incluiria o depoimento do acusado e reivindicações que pudessem apoiá-lo, diz Schomburg. "Por exemplo, que o hospital tinha sido esvaziado antes e que a Rússia tentou confirmar que não havia mais ninguém no prédio. Isso exigiria relatos de muitas testemunhas. No final, o tribunal decide sobre os fatos apurados", diz.
Nem um único processo
Em 1993, a ONU criou o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY) para julgar crimes de guerra ocorridos durante as guerras que resultaram na fragmentação da antiga Iugoslávia.
Nessas últimas três décadas, milhares de instalações médicas foram atacadas em conflitos − não apenas nas guerras nos Bálcãs nos anos 90, mas também nos conflitos no Afeganistão e na Síria do século 21. Mas a DW não conseguiu encontrar nem uma única tentativa internacional de condenar ataques a hospitais.
Foram apresentadas acusações contra o ex-líder sérvio Slobodan Milosevic relacionadas com o massacre de pacientes e pessoal médico feito refém na cidade croata de Vukovar. Mas, como as vítimas foram executadas fora do local, as acusações específicas não foram por um ataque direto a um hospital − embora as instalações também tenham sido bombardeadas várias vezes ao longo de um ano. Milosevic morreu sob custódia antes da conclusão de seu julgamento.
Especialistas jurídicos concordam esmagadoramente que, apesar do clamor público, os ataques a hospitais raramente são considerados crimes de guerra devido às proteções legais concedidas aos supostos criminosos.
Ainda assim, outros dizem que houve um progresso significativo no direito internacional, e que pode haver fundamentos para a acusação sob outras categorias criminais, tais como crimes contra a humanidade ou crimes de terror.
"O direito internacional tem evoluído nas últimas décadas. Não é mais possível usar indevidamente a incoerência entre leis para combatentes e civis para argumentar que um hospital em funcionamento pode ser um alvo legítimo", diz Mark Somos, estudioso de Direito e professor do Instituto Max Planck de Direito Internacional.
"É categoricamente uma violação do direito internacional, e exige um processo judicial sob os mais rigorosos mecanismos de aplicação da comunidade internacional", afirma.
Argumentos russos
Em um vídeo produzido pela mídia russa e divulgado no YouTube, um repórter com um capacete e um colete à prova de balas com a palavra "Imprensa" fala à câmera sobre o que deixou o hospital de Volnovakha em ruínas.
No relato, a guarda nacional ucraniana é acusada de supostamente ter mantido uma base nas instalações médicas. O repórter russo alega que os médicos foram mantidos reféns no porão e que "soldados ucranianos ingratos" teriam ordenado disparos contra o hospital com um tanque.
Khadzhynov, que viveu a destruição de seu hospital, está a par desse relato forjado. "É tudo besteira", diz.
Não havia pessoas armadas na área do hospital, afirma Khadzhynov. A partir de 1º de março, quando as Forças Armadas russas lançaram uma nova onda de ataques ao hospital, o pessoal médico rejeitou soldados feridos porque a instalação estava muito acima de sua ocupação máxima.
A unidade de jornalismo investigativo da DW solicitou repetidamente uma posição ao Ministério da Defesa russo pelos ataques ao hospital de Volnovakha e a dezenas de outras instalações médicas ucranianas. Os pedidos não foram respondidos até a publicação deste reportagem.
"O mundo precisa entender que as antigas regras de ser neutro, de ser apolítico na esfera humanitária, não são mais relevantes aqui nesta guerra, porque o agressor usa questões humanitárias como parte de sua estratégia de guerra híbrida", diz o ex-vice-ministro da Saúde Pavlo Kovtoniuk.
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