A proposta prevê que no futuro só poderão ser demarcadas apenas terras indígenas que estivessem tradicionalmente ocupadas por esses povos até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O texto também retira a demarcação de terras da alçada da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e devolve a atribuição ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
A matéria estava em tramitação na Câmara desde 2007, mas teve sua análise acelerada após aprovação de um requerimento de urgência no último dia 24 de maio. Segundo críticos da proposta, o objetivo seria tentar influenciar o Supremo Tribunal Federal (STF), que voltará a analisar na próxima semana, em 7 de julho, um caso relacionado ao marco temporal.
O texto, que agora segue para votação no Senado, prevê, ainda, entre outros pontos, a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas, e que os processos administrativos que ainda não tenham sido concluídos sejam adequados à nova regra.
Em entrevista à DW Brasil, Simone Nacif, porta-voz da Associação Juízas e Juízes para a Democracia (AJD), apontou que o projeto tem vários problemas quanto à sua legalidade de acordo com as regras estabelecidas na Constituição Federal,
Para a AJD, o projeto votado ignora as injustiças históricas sofridas pelos povos indígenas, que foram expulsos de suas terras como parte da política de Estado principalmente na Ditadura Militar. "Qualquer outra interpretação pode se converter num catalisador do genocídio que este país perpetra a sua população ancestral há pelo menos 500 anos, como no recente caso do povo Yanomami", defende a entidade em nota.
Para Nacif, toda a discussão é uma afronta à democracia. "Nosso posicionamento é que não existe democracia sem direitos humanos, sem respeito aos direitos dos indígenas, sem meio ambiente. Os indígenas são considerados pelo mundo todo, pelas Nações Unidas, como os guardiões das florestas, do meio ambiente, o povo que segura o céu", justifica.
DW Brasil: O projeto de lei 490/07 aprovado na Câmara dos Deputados está de acordo com a Constituição?
Simone Nacif: Este projeto de lei tem inconstitucionalidade tanto formal quanto material. É um projeto inconstitucional formalmente porque estabelece limites, restrições, para um direito declarado na Constituição. Não poderia ser feito por lei, deveria ser feito por uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). E, ainda assim, a constitucionalidade formal do procedimento seria questionável.
Existe uma PEC, a 215, de 2000, que trata do Marco Temporal. Ela também prevê transferir a demarcação das terras indígenas do Executivo para o Congresso Nacional.
A inconstitucionalidade formal do PL 490 é porque está tratando por lei ordinária, que é um procedimento mais simples, uma matéria que é constitucional. O PL está de certa forma restringindo um direito declarado expressamente no artigo 231 da Constituição.
Na verdade, há uma grande discussão, porque esse direito declarado é uma cláusula pétrea, está acobertado pelo artigo 60 parágrafo IV da Constituição. Nem mesmo uma emenda à Constituição poderia tratar desta matéria restringindo esse direito.
Mas ele também é inconstitucional sob o ponto de vista do conteúdo, pois toda a tese do Marco Temporal é inconstitucional.
Caso o Senado também aprove esse projeto, quais são as chances de que a lei não entre em vigor por conta dessas questões de constitucionalidade?
Havia uma jurisprudência há um tempo atrás em que o parlamentar poderia entrar com um mandado de segurança para garantir o seu direito de não participar de um processo de iniciativa inconstitucional. Essa jurisprudência não vinga mais, não tem mais a força que teve.
Se aprovado pelo Senado, esse PL vai ser encaminhado para o presidente da República sancionar. Ele poderá vetar total ou parcialmente o projeto. Mas, se o presidente vetar, o projeto pode voltar para o Congresso e o veto pode ser derrubado. Se a lei entrar em vigor, tem que haver o questionamento da constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF), que é o guardião da Constituição.
O STF vai enfrentar a tese do Marco Temporal, até porque essa urgência na Câmara foi aprovada a toque de caixa porque o STF pautou para junho o julgamento do recurso que trata dessa matéria. É um recurso de um caso de reintegração de posse movido pelo Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina contra a Funai e o povo Xokleng referente à Terra Indígena Ibirama.
Quando foi julgado aquele caso da TI Raposa Terra do Sol, embora o direito à demarcação tenha sido reconhecido, foi estabelecido uma série de restrições ao exercício do direito, dentre eles o Marco Temporal. Com o impeachment ilegal da presidente Dilma Rousseff em 2016, a Advocacia Geral da União (AGU), sob Michel Temer, baixou um parecer aplicando todas as condições do caso Raposa Terra do Sol administrativamente. Isso parou todos os processos de demarcação.
Paralelo a isso, várias ações de reintegração de posse foram propostas com pedido de despejo dos povos indígenas, e ações de anulação de demarcações já efetuadas.
O ministro do STF Edson Fachin então suspendeu esse parecer da AGU e, portanto, esse processo contra o povo Xokleng foi afetado e, agora, está pautado para o início de junho. Logo, essa decisão que o Supremo vai tomar sobre o Marco Temporal será vinculante a todas as instâncias do Poder Judiciário.
Vendo isso, o Congresso Nacional, retrógrado, aprovou a urgência desse PL 490. Esse Marco Temporal não tem qualquer substância jurídica, histórica, antropológica. É uma tese que inverte as situações.
A Associação Juízas e Juízes pela Democracia pontua, inclusive, que essa tese do Marco Temporal ignora todas as remoções forçadas de populações indígenas de seus territórios que foram feitas pelo próprio Estado brasileiro durante a Ditadura Militar.
Não só na época da Ditadura. Mas as expulsões aumentaram no governo militar.
A política indigenista estatal desde o início do século 20 era de expulsão das terras e confinamento em reservas. Na Ditadura, isso aconteceu de forma muito mais intensa.
Então, os indígenas foram expulsos de suas terras, eles não podiam estar nos seus territórios ancestrais porque foram expulsos e, por causa disso, não têm direito à demarcação? É algo totalmente absurdo.
Os indígenas não ocupavam as terras. As terras são dos indígenas tradicionalmente. Eles exerciam esse direito de relação afetiva e ancestral com terra desde muito antes de os europeus - esses sim - invadirem violentamente as terras.
A Constituição brasileira aplica a teoria do indigenato, que é antiquíssima. Ela fala da tradicionalidade da relação com a terra, que vem muito antes do Estado, antes de qualquer outro direito. Então nenhuma grilagem, nenhum outro direito formal, nenhum outro registro posterior pode se opor a uma terra com a qual o indígena tem uma relação afetiva, antropológica, cultural, espiritual. O critério de relação de tradicionalidade indígena com a terra não é temporal.
Projetos como o PL 490 abalam a democracia brasileira?
Projetos como esse ferem profundamente a democracia. A Associação Juízas e Juízes para a Democracia nasceu em 1992, com o processo de redemocratização, logo depois da Constituição. Nós nos destinamos a reconstruir a democracia, começamos com a abertura democrática.
Nosso posicionamento é que não existe democracia sem direitos humanos, sem respeito aos direitos dos indígenas, sem meio ambiente. Os indígenas são considerados pelo mundo todo, pela ONU, como os guardiões das florestas, do meio ambiente, o povo que segura o céu.
Não existe democracia sem vida, não existe vida sem um meio ambiente respeitado, ou com um meio ambiente vilipendiado pelo agronegócio, pelas mineradoras.
Quero chamar a atenção de novo para um fato: foi só acontecer o impeachment ilegal da presidente Dilma Rousseff que Michel Temer baixou um parecer pela AGU aplicando todas as condicionantes violadoras dos direitos ancestrais tradicionais dos indígenas. Então, a violação dos direitos dos povos indígenas tem direta relação com a violência à democracia que enfrentamos.
É nosso objetivo, nosso fim, defender a democracia, os direitos humanos, os povos indígenas.
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