O levantamento foi divulgado nesta quarta-feira (26/07) como parte do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, produzido anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
"O que mais causou asco e indignação, ao longo deste período, foi perceber a satisfação dos agressores naquilo que se fazia contra os povos indígenas. Nada os continha. Ao contrário. Aqueles que deveriam agir e pôr fim às agressões, na verdade, as incentivavam. A morte era uma predileção. Parecia uma caçada aos originários filhos e filhas do Brasil”, afirma no documento Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi.
A categoria "violência contra pessoa”, segundo metodologia adotada no levantamento, inclui, além de assassinatos, abuso de poder, ameaça de morte, ameaças várias, homicídio culposo, lesões corporais dolosas, racismo e discriminação étnico-cultural, tentativa de assassinato e violência sexual.
Para o Cimi, os números registrados nos últimos quatro demonstram que o governo Bolsonaro atuou para proteger agressores e criar um ambiente de impunidade como parte de um projeto.
"O crime organizado dentro dos territórios indígenas passou a ter no Estado um aliado fundamental, que lhe assegurou um ambiente de impunidade e uma expectativa espe-
culativa de regulamentação da atividade ilegal. O avanço da violência e o aumento de sua crueldade, de forma sistemática, eram parte do projeto em curso”, analisam os pesquisadores Corrado Dalmonego e Luis Ventura.
Na visão dos autores que participaram do relatório, "a intensidade e a gravidade desses casos não podem ser compreendidas fora do contexto de desmonte da política indigenista e dos órgãos de proteção ambiental a que o Estado esteve submetido durante
os quatro anos sob o governo de Jair Bolsonaro.”
O último governo foi marcado por episódios brutais, como os assassinatos do indigenistaBruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho do ano passado, na região da Terra Indígena (TI) do Vale do Javari, no Amazonas. Os impactos da desassistência na área de saúde, mortalidade na infância, invasão do garimpo na TI Yanomami e em outros territórios são apontados como causas para o agravamento da violência no período.
O retrato de 2022
A categoria que mais apresentou aumento de casos em 2022, segundo a metodologia do relatório do Cimi, foi "violência contra patrimônio”. Foram 158 registros de conflitos ligados a direitos territoriais e 309 casos de invasões, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio.
Alguns desses conflitos resultaram em assassinatos de indígenas com participação de agentes policiais atuando como "segurança privada” para fazendeiros, afirma o relatório. Em setembro do ano passado, um garoto pataxó de 14 anos foi morto durante um dos ataques a tiros na TI Comexatibá, no sul da Bahia, onde indígenas buscam recuperar uma parte do território ancestral onde, atualmente, há uma fazenda.
"A postura declarada e intencionalmente omissa do governo Bolsonaro em relação à demarcação de terras indígenas redundou no aprofundamento de conflitos por direitos territoriais, em muitos casos com situações de ameaças, ataques armados e assassinatos de lideranças”, aponta o Cimi, ressaltando a ausência de demarcações de TIs durante o mandato do ex-presidente.
Na categoria "violência contra a pessoa”, foram contabilizados 416 registros em 2022. Eles incluem abuso de poder (29); ameaça de morte (27); ameaças várias (60); assassinatos (180); homicídio culposo (17); lesões corporais dolosas (17); racismo e
discriminação étnico-cultural (38); tentativa de assassinato (28); e violência sexual (20).
Como nos três anos anteriores, Roraima (41), Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30) foram os estados com maior número de assassinatos de indígenas.
Dentre as mortes, está a de uma adolescente yanomami de 12 anos. Ela foi estuprada e morta por garimpeiros numa comunidade na região de Waikás, uma das mais atingidas pela invasão na TI Yanomami.
De 2019 a 2022, foram contabilizados 795 assassinatos de indígenas no Brasil, uma média de 198,75 por ano.
Vida de crianças ameaçadas
Em todo o Brasil, 3.552 mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos foram registradas entre 2019 e 2022. A maioria ocorreu no estado de Amazonas (1.014), Roraima (607) e Mato Grosso (487), segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena, Sesai, sistematizados na categoria "violência por omissão do poder público”.
O impacto sentido na TI Yanomami, assolada por uma onda de invasão que levou msis de 20 mil garimpeiros à região, foi desproporcional. O território, que abriga cerca 4% do total de indígenas que vivem no Brasil, concentrou 17,5% de todas as mortes, com 621 óbitos no período.
Para os autores do relatório, a realidade pode ser ainda mais grave do que o apontado pelos dados oficiais, já que parte da estrutura de saúde da TI foi apropriada por garimpeiros, em regiões isoladas e de difícil acesso.
"Crianças morrem por desnutrição, a malária se alastra, a população indígena é obrigada a ingerir água contaminada por mercúrio, crianças e mulheres são violentadas, a dependência do álcool e de drogas ilícitas se alastra. Tudo isso diante de tamanha desestruturação social gerada pela presença de invasores, principalmente, em razão da prática do garimpo ilegal”, apontou a causa do elevado número de mortes entre os yanamomi o relatório da então deputada Joenia Wapichana, que presidiu a comissão externa da Câmara dos Deputados para investigar a situação.
"Mais que uma inércia e um estímulo indireto dos representantes eleitos ao cometimento de crimes em territórios indígenas, verifica-se um apoio direto à intervenção ilícita, o que indica uma participação das elites financeiras e dos representantes eleitos no sistema de exploração ilegal”, conclui a relatora, que atualmente preside a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Funai.
Recomeço
A política anti-indígena declarada de Jair Bolsonaro foi alvo de diversas denúncias apresentadas a autoridades fora do país. A última foi apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em novembro passado, na Organização das Nações Unidas (ONU).
O documento, que foi assinado também pela Conectas Direitos Humanos, o Instituto Socioambiental (ISA), o Observatório do Clima e o WWF-Brasil, pontua diversas ações que levaram à destruição do meio ambiente e violações a direitos humano e pede ajuda da ONU para que o Estado repare os danos causados.
A derrota de Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais e a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo, em 2023, a expectativa do movimento indígena é de mudanças.
"Que os novos governantes busquem reparar o mal, garantindo aos povos indígenas seu direito fundamental à terra e aos seus modos de ser e viver nas diferenças”, diz Dom Roque Paloschi.
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