A busca por reparação oito anos depois do desastre de Mariana


Nádia Pontes

05/11/2023 14h04

Quase 1 milhão de pessoas foram impactadas após colapso da barragem da Samarco. Moradores de vilas destruídas ainda esperam entrega de assentamentos.Impedidos de conviver com o rio Doce há oito anos, moradores do Quilombo 14, em Naque, Minas Gerais, esperam sair da invisibilidade. A pesca, o cultivo de alimentos e o lazer das cerca de 80 famílias estão em suspenso desde o colapso da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, controlada pela Vale e BHP Billiton, em 5 de novembro de 2015.

Os mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos liberados no ambiente mataram imediatamente 19 pessoas, escorreram pelo rio Doce até encontrarem o Atlântico, na costa do Espírito Santo. É como se 1,3 milhão de contêineres marítimos cheios de lama fossem despejados numa avalanche.

Agnaldo Batista Rodrigues, morador do quilombo, nunca mais plantou na ilha que o Doce formava perto da comunidade, a mais de 260 quilômetros do epicentro da tragédia. O cultivo de feijão, milho e hortaliças era vital para o consumo próprio das famílias e uma fonte de renda.

"Tivemos que começar a comprar comida. E ninguém mais quis comprar da gente. Nunca recebemos nada da Samarco por tudo o que perdemos", diz Rodrigues à DW.

Foi só no fim de 2022 que ele e outras comunidades tradicionais atingidas passaram a contar com uma assessoria técnica independente. As entidades mapeiam os impactos e ajudam a apontar, após pesquisa, os danos que devem ser reparados.

"A gente ficou sem informação sobre nossos direitos todo este tempo. Agora a gente espera que a empresa faça o que é justo, que dê o mínimo do que a gente perdeu, que dê condições para a gente continuar na roça", afirma Rodrigues.

Atingidos ficaram mais pobres

É possível que o número de pessoas atingidas ao longo das 49 cidades sob influência da rota de lama chegue a 980 mil, segundo estimativas baseadas em estudos da Fundação Getúlio Vargas. Em Naque, onde fica o Quilombo 14, um levantamento de dados inicial apontou a dificuldade de acesso à água e empobrecimento da população como consequências mais visíveis após o colapso da barragem.

"A postura das mineradoras é de não reconhecer sua responsabilidade sobre o rompimento e a necessidade de reparar danos decorrentes de um crime ambiental", analisa

Franciene Vasconcelos, coordenadora institucional da Associação de Defesa Ambiental e Social, Aedas.

A entidade é uma das assessorias técnicas independentes nomeadas pela Justiça para ajudar moradores nas zonas impactadas. Uma coleta de dados preliminar com 1873 pessoas nos 15 municípios mineiros onde a Aedas atua mostrou que 75% nunca receberam qualquer auxílio financeiro emergencial. A cada 10 entrevistados, 9 empobreceram desde a tragédia socioambiental.

A missão de reparar os danos foi dada à Fundação Renova, criada em 2016 segundo um acordo entre Justiça e mineradoras. Embora a entidade afirme que tenha desembolsado R$ 32,66 bilhões em ações de reparação e compensação até agosto de 2023, a crítica de quem atua junto às comunidades é de que o atendimento está aquém das urgências.

"O que está sendo pago não garante o modo de vida dos atingidos. Não garante água para o plantio, por exemplo. A Renova diz que fica caro. Mas ela tem que arcar, porque o que as mineradoras fizeram ficou muito caro para as pessoas. Elas enterraram vidas, lembranças, história, enterraram tudo", analisa Rodrigues Pires Vieira, da Caritas de Mariana, que presta assessoria técnica na região desde outubro de 2016.

Julgamento marcado na Inglaterra

No Brasil, ninguém foi preso como responsável pelo rompimento da barragem de rejeitos de Fundão oito anos após o desastre.

Na Inglaterra, a justiça marcou para agosto de 2024 o julgamento do processo que leva aos tribunais a mineradora anglo-australiana BHP. Recentemente, a Justiça aceitou a entrada da Vale na ação após pedido da BHP para que a mineradora parceira, que também controla a Samarco, contribua financeiramente com os pagamentos.

O processo, provavelmente a maior ação coletiva da história na jurisdição inglesa, é movido pelo escritório de advocacia Pogust Goodhead em nome de 700 mil atingidos. O valor exigido das mineradoras chega a R$ 230 bilhões em compensações, que seriam dadas não só a indivíduos, como também a empresas, municípios, autarquias e instituições religiosas que sofreram os impactos trazidos pelo desastre de Mariana.

O caso foi apresentado em 2018 com cerca de 200 mil pessoas. Neste ano, outros 500 mil atingidos foram incluídos, dentre eles moradores de comunidades indígenas e quilombolas.

"O povo da cidade não queria comprar nosso leite achando que as vacas bebiam da água do rio Doce. Então dificultou tudo pra gente. Nada de indenização até hoje. A gente enfrenta muito racismo", alega à DW Geraldo Batista Rodrigues, quilombola representado na ação.

"A Renova não dá conta"

Aos pés da antiga barragem, os moradores sobreviventes do distrito de Bento Rodrigues, o mais devastado após o desastre, aguardam até hoje a conclusão do novo assentamento. O último prazo estabelecido pela Justiça para a entrega venceu em 2019.

"A Renova não dá conta. Muitas casas que estão prontas estão caindo, com muitas trincas. É a quarta vez que estão tentando consertar a minha casa", relata à DW José do Nascimento de Jesus, seu Zezinho, como é conhecido.

Com 78 anos, ele mora numa casa alugada pela fundação desde que perdeu tudo para a lama. A perspectiva de mudar para uma casa

nova, no assentamento que abrigará os moradores do antigo Bento, não traz alegria a ele.

"Não estou animado. Sei que teremos um problema sério de adaptação. Antes eu tirava leite, fazia queijo, comia mexerica do pé, colhia laranja, criava galinha, comia ovo caipira. Tinha minhas hortaliças, tudo sem agrotóxico. No assentamento não vai ter nada disso", critica seu Zezinho.

Embora o vilarejo não esteja finalizado, mais de vinte famílias já se mudaram para o local. Segundo a Renova, 168 imóveis dos 248 previstos em Bento estão com obras finalizadas, incluindo casas, sítios, comércios, lotes e bens de uso coletivo como escola, estações de tratamento de água e esgoto e posto de serviços.

"É contra a lei as pessoas terem se mudado. Nós saímos todos juntos para não morrer, por que a volta será de um a um? Na lei estava que iríamos voltar todos juntos", argumenta seu Zezinho.

Em Paracatu, outro vilarejo destruído pelos rejeitos, 66 imóveis dos 93 previstos estão finalizados; 19 teriam sido entregues aos moradores. A mudança para os novos distritos, informou a Renova à DW, acontece gradativamente, conforme a intenção das famílias.

Desastre em evolução

Depois do desastre de Mariana, moradores afetados se juntaram ao Movimento dos Atingidos por Barragens, MAB. Eles dizem que os impactos do evento de 2015 são continuados e crescentes, oito anos depois.

"A cada enchente, o crime se renova. O rio Doce sobe e joga rejeito para fora", exemplifica Thiago Alves, do MAB, um dos coordenadores da campanha Revida Mariana.

Considerado um dos desastres socioambientais mais estudados do mundo, o caso de Mariana tem causado muito sofrimento mental aos moradores. "Estudos de saúde apontam uma piora crescente na vida dos atingidos. É um tema não aceito pelas empresas, que não têm um programa específico para dano à saúde mental", comenta Alves.

Seu Zezinha e a esposa dizem sofrer com a situação. Desde o fim de Bento Rodrigues causado pelo colapso da barragem, cada membro da comunidade, que se considerava unida, foi para um lado, e muitos sequer se reencontraram.

"Está tudo pior. Muitos estão com problemas de saúde mental, tomam remédio, estão deprimidos. Muitos já morreram", lamenta.

Desde 2015, pelo menos 55 ex-moradores de Bento Rodrigues faleceram. Um levantamento feito pela Cáritas de Mariana estima que, no total, 113 vítimas não vivem mais.

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