Mexeu com as praias, mexeu com os brasileiros

Não há lugar mais sagrado no Brasil do que a praia, chamada por muitos de o espaço mais democrático do país. Como assim Flávio Bolsonaro e Neymar querem tomá-las de nós?


Thomas Milz

05/06/2024 07h18

Rio de Janeiro, o mais lindo balneário do mundo! Basta o sol aparecer, já há pessoas naquela praia perto da minha casa, mesmo no meio da semana. Quando chega o fim de semana ou um feriado, a faixa de areia lota ainda mais. É sempre tanta festa que a prefeitura agora está empenhada em combater os aparelhos de som e os churrasquinhos na praia.

Mas isso de pouco adianta, pois os vendedores ambulantes ficam do ladinho. Cheiro de maconha se mistura com a fumaça de carne assada. O bairro também encheu de flanelinhas, que deixam os moradores ainda mais raivosos. Quando o sol se põe, a faixa de areia se transforma num mar de lixo. Aí vêm os recicladores em busca de latinhas. Parece um local como o velho faroeste, sem regras.

Mas há quem jure que as praias são o lugar mais democrático no Brasil. Sempre tive um certo problema para entender o que se queria dizer com isso. É nelas que se organizam fóruns de debates sobre os grandes temas políticos, como se fosse uma Ágora carioca, seguindo o exemplo do local de manifestação da opinião pública em Atenas? Ou será que há nelas votação sobre o que se pode ou não fazer na areia?

Aprendi que não é nada disso. "Democrático" quer dizer apenas que todos podem frequentar tal local e fazer por lá o que bem entenderem, independentemente da classe social. Nas praias da orla carioca, há de tudo: vendedor com ou sem autorização da prefeitura, serviços de comida e bebida, som alto, vendedor de drogas, arrastão e policiais com metralhadoras.

E aí surgiu, de repente, nas timelines das redes sociais, a notícia de uma PEC com a suposta intenção de "privatizar as praias". E os vídeos de celebridades mostrando sua indignação com esse absurdo. Ainda por cima apareceu uma treta entre Neymar e a atriz Luana Piovani com o tema da tal PEC das praias no meio.

Em discussão no Senado

Essa PEC, que é de 2022 e já passou pela Câmara dos Deputados, agora está no Senado. Ela trata da venda ou transferência de terrenos da União à beira-mar, chamados de terrenos de marinha, que supostamente poderiam ser vendidos também para empresários, que aí poderiam construir hotéis de luxo, por exemplo, e, de repente, poderiam criar praias particulares, vetando o acesso para a população em geral.

Na verdade, não seria uma privatização das praias. Mas haveria o perigo de dificultar o acesso a certas praias, o que hoje já existe em alguns lugares. Outro argumento dos opositores é que os empreendimentos deslocariam a população ribeirinha e colocariam em perigo as áreas de proteção, como os mangues.

Claro que tudo isso geraria muito atrito. Pois garante a Constituição que as praias são bens públicos de uso comum e de livre acesso – em teoria, pelo menos. Perto da minha casa há uma praia com acesso limitado só para quem é do Exército. Ou para quem tem amigos na administração do Exército. O Exército brasileiro é esperto, sempre reserva as praias mais lindas para si. Mas, pelo menos, sempre oferece esses lugares paradisíacos aos presidentes e presidentas da República para tirarem férias sem serem incomodados pelo "público em geral".

Menos espertos são os defensores da PEC. Colocaram justamente Flávio Bolsonaro como relator da proposta no Senado. Ainda nos lembramos bem da fracassada ideia da família dele de transformar a estação ecológica de Tamoios numa "Cancún brasileira" – além de não pagarem as multas do Ibama por pescar naquela área. Agora, querem estender tal ideia para todo o litoral. Para o "01", exterminar as taxas de ocupação, o foro e o laudêmio geraria um boom econômico nas costas brasileiras.

Ainda por cima aparece Neymar, que, por sua vez, entrou na história ao anunciar uma parceria para a construção do projeto "Caribe brasileiro", com imóveis de alto padrão à beira-mar nos litorais sul de Pernambuco e norte de Alagoas. Justamente Neymar, que ganhou as manchetes com seu lago artificial construído em Mangaratiba, interditado por falta de licença ambiental. Só falta mesmo o ex-ministro Ricardo Salles, aquele que queria passar a boiada, para defender a PEC. Voilá, com essa escalação, fica mesmo difícil defender a PEC.

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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente da DW.

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