"Desenvolvimento sustentável é um processo", diz brasileira à frente de órgão da ONU para fundos marinhos


Nádia Pontes

26/08/2024 10h08

Leticia Carvalho será a primeira mulher a coordenar a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) que tem a missão de criar regras para explorar minérios e metais no fundo dos oceanos.

Segundo a brasileira, ela sabe que está diante de um grande desafio. Até o fim de 2025, o órgão que faz parte do sistema da ONU e tem sede na Jamaica deve concluir as regras sobre a exploração de minérios em águas profundas. Se tudo correr como o planejado, as licenças para extração e uso comercial saem a partir de 2026.

"Não serei eu que darei as respostas. Irei colocar à mesa o debate mais amplo possível e instruído possível, dentro das evidências científicas e circunstâncias atuais, para entregar um código de mineração que possa dar conta da missão da ISA", afirma em entrevista à DW.

A oceanógrafa foi eleita recentemente para chefiar o órgão a partir de 2025 numa disputa acirrada, com apoio do governo brasileiro, países da América Latina e do Caribe, além de europeus, como a Alemanha. O atual secretário-geral, o britânico Michael Lodge, encerra dois mandatos sob críticas e desconfiança dos países-membros por falta de transparência na gestão.

Para ela, a conquista do posto também foi uma vitória pessoal. "É uma oportunidade de inspirar outras mulheres no processo de liderança. Tanto se fala em balanço de gênero, mas raramente a gente consegue alçar posições de tomada de decisão", comenta.

Até o fim do ano, a oceanógrafa permanece em Nairobi, no Quênia, onde atua no momento como assessora especial da diretora-executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

DW Brasil: Você assume a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos num momento de crise de credibilidade do órgão. Como recuperar a confiança da ISA neste momento?

Letícia Carvalho: É um grande desafio. Mas, ao contrário de me desanimar, isso me anima. Tem um desafio de restaurar a confiança. Sobretudo, há uma questão bastante premente no âmbito do conselho quanto à falta de transparência da atual gestão, justificativa para gastos feitos, contratações, promoções de pessoal efetuadas no último biênio.

Um exemplo é o fato de que o conselho, na última reunião, não conseguiu consenso para endossar o plano orçamentário para o próximo biênio 2025-2026, que é quando eu entro – o que, certamente, é uma evidência do atual desgaste, da falta de confiança e de que essa confiança precisa ser restaurada. Esse plano orçamentário só foi aprovado depois do resultado da eleição, quando foi assegurada a saída do atual secretário-geral.

Há outras questões, como a solicitação de informações referentes aos contratos de exploração e, sobretudo, seus estudos de impacto ambiental relacionados e a ausência de respostas do secretariado. O não compartilhamento de informações, de uma certa forma, sugere uma incapacidade de gestão da informação pelo secretariado.

Uma outra linha de restauração da confiança muito importante é o investimento na gestão de dados, de informações e do conhecimento. Uma terceira linha é referente à questão da participação ampliada de todos.

Temos uma assembleia que nunca obteve quórum, nunca. Pela primeira vez, o quórum foi obtido na última assembleia muito pelo ímpeto de se buscar trocar a liderança. Pela primeira vez na história da ISA, 120 países estavam presentes, sendo que são 169 membros. O atual secretário-geral foi eleito com votos indicativos no âmbito do conselho com apenas 54 votos na primeira vez em que se candidatou e 81 votos na segunda, ou seja, abaixo do quórum mínimo necessário de 84 para tomada de decisões na assembleia.

DW Brasil: Você mencionou a desconfiança em torno da questão orçamentária da ISA. Como a autoridade garante verba e como gasta dinheiro?

Letícia Carvalho: A ISA tem uma arquitetura complexa. Ela parte, claro, das premissas da lei do direito do mar. Tem também uma visão evolucionária no sentido da possibilidade de uso comercial de minerais e metais em águas profundas.

30 anos, quando a autoridade foi criada, havia essa característica visionária, mas a tecnologia não estava disponível. A própria arquitetura da ISA também foi pensada para evoluir, ou seja, se fortalecer, ampliar ou ter mais áreas a partir do desenvolvimento das premissas e das potencialidades da própria atividade de exploração comercial de minerais e metais em altas profundidades.

A ISA tem diferentes fundos fiduciários. Há contribuições extraorçamentárias dedicadas à participação de países em desenvolvimento, que não podem custear a sua própria participação. Há outro relacionado à construção de capacidade em países em desenvolvimento que não dispõem da tecnologia necessária. Há um terceiro fundo que é o de contribuições obrigatórias de todos os países-membros, classificado a partir daqueles que têm maior investimento, ou outros que têm interesses especiais.

Há ainda a previsão de criação de uma empresa, que seria um braço comercial da ISA. É que se houver uma exploração comercial em escala [de minérios], a autoridade deveria ser autossuficiente do ponto de vista financeiro e completamente independente. A empresa ainda é algo a ser desenvolvido e completamente relacionado à possibilidade de desenvolvimento da atividade em si em escala comercial.

A ISA tem cerca de 50 funcionários e conta com apenas 26 milhões de dólares e tem a missão de ser órgão regulador de grandes empresas, de atores que podem mobilizar valores na escala dos bilhões de dólares, alguns até falam em trilhões. A ISA basicamente paga o seu pessoal, programas de construção de capacidade em países em desenvolvimento e a participação de países nas reuniões.

DW Brasil: Quais são os principais interesses em jogo para o Brasil no âmbito da ISA?

Letícia Carvalho: A mim não cabe falar pelo Brasil. Como secretária-geral, trabalho para todos os 169 países-membros. O que posso dizer é que o país teve um reconhecimento recém-alcançado, no âmbito do direito internacional, da margem da plataforma continental tanto no extremo norte como no extremo sul, aumentando a área oceânica sob jurisdição brasileira.

Há um novo mapa do país que já traz a elevação do cone do Rio Grande, no extremo sul, como uma área incorporada à Zona Econômica Exclusiva do Brasil, ou seja, sob jurisdição brasileira.

Por isso, o Brasil era um dos países contratantes na ISA. Um contrato de exploração no sentido de buscar viabilizar o entendimento sobre o potencial exploratório, sobretudo nessa parte da elevação do cone de Rio Grande. Esse contrato foi retirado da ISA pelo fato de não ser mais necessário solicitar a uma autoridade internacional uma permissão para exploração nessa área.

O Brasil tem capacidade tecnológica, já explora petróleo, óleo e gás a 5 mil metros de profundidade na área do pré-sal. É um país muito interessante nesse sentido porque tem interesses complexos. Acho que é altamente conhecida a importância da proteção ambiental que o Brasil dá em diversos aspectos do seu desenvolvimento econômico, que sediou e deu início a convenções como a do clima, a convenção de biodiversidade, da desertificação.

O país tem um trabalho muito ativo na área de proteção oceânica, tem uma tradição imensa no estabelecimento do Atlântico Sul como santuário de baleias, por exemplo, e na manutenção da Antártida como área protegida, sem atividades comerciais, apenas para pesquisa ou atividade de cunho pacífico.

É um país com grandes preocupações e grandes ações de proteção ambiental. Com essa complexidade, claro, precisa balancear seus interesses. Acredito, em sua grande maioria, que os países no ISA buscam uma liderança que possa ser capaz de entregar esse equilíbrio dos interesses; alguma coisa entre os extremos que hoje preponderam na ISA – desde o banimento completo da atividade da mineração em águas profundas, como alguns advogam, até mesmo à ausência da conclusão do código de mineração, o que seria, a meu ver, algo bastante disruptivo. Porque na ausência de segurança regulatória não se sabe o que está fazendo, e os fundos oceânicos são patrimônio mundial da humanidade.

DW Brasil: Qual é o cenário hoje quando se fala em exploração de minérios em águas profundas?

Letícia Carvalho: A ISA celebra 30 anos de constituição. O capítulo 11 da lei do direito do mar foi aprovado há 30 anos. Desde então, se organiza para poder atuar como órgão regulador, gestor, das atividades nos fundos marinhos como um todo – e protetor também.

Nesse período, foram emitidas apenas licenças de pesquisa: 33 para 19 países contratantes, todos eles trabalhando em escala de estudos do potencial da mineração, e também das consequências e dos impactos.

Até o momento, existe uma atividade exploratória. É muito caro realizar esse tipo de estudo em áreas oceânicas de profundidade. Requer uma tecnologia muito sofisticada e poucos países têm acesso a isso. Essa pesquisa é muito bem-vinda porque traz essa capacidade de compreender esse espaço, os ecossistemas que o compõem, os fluxos, a dinâmica entre a parte viva e não viva. Não há ainda, a não ser que de forma ilegal e desconhecida, atividade comercial nos fundos marinhos governados pela ISA.

DW Brasil: E qual o planejamento da ISA para legislar sobre a mineração em águas profundas?

Letícia Carvalho: A previsão é que o código de mineração seja concluído até 2025 e que as atividades então possam ser passíveis de autorização em 2026. Tudo depende de uma apresentação e aprovação de um plano de trabalho conforme o código de mineração.

Avanços importantes foram feitos nessa última reunião, que produziu o "rascunho zero" desse código. Ele ainda vai ser objeto de negociação, o que deverá acontecer na próxima reunião de março de 2025, já na minha gestão.

DW Brasil: E nesse momento de emergência climática, em que tudo no planeta está interconectado nessa teia invisível que leva ao aquecimento global, com os oceanos mais quentes, qual é a sua visão para essas negociações?

Letícia Carvalho: Assumo a ISA com a perspectiva de cumprir o mandato da lei do direito do mar. Acho que o uso de minerais e metais do oceano profundo é um tema portador de futuro. Como você disse, tudo está interconectado e a minha especialidade particular são as interações oceano-atmosfera, ou seja, a mudança do clima.

As determinações que foram feitas hoje em relação a essa atividade terão impacto nas economias, nas nações, nas pessoas e no meio ambiente no longo prazo. Então, meu compromisso é me manter alinhada às previsões da lei do direito do mar, particularmente do artigo 11, que dá à autoridade internacional o mandato para os fundos marinhos. E o mandato inclui entregar duas coisas: a possibilidade de exploração sem causar danos aos ecossistemas dos fundos marinhos – danos permanentes, de longo prazo. Essa conciliação não é trivial.

Mas o grande desafio é regulatório. O desenvolvimento sustentável não é algo que se alcança ou que se entrega. É um processo. Um processo que é consensual num determinado momento e ele segue em progresso à medida que o conhecimento científico avança.

É preciso também desenvolver amplamente as questões de mercado, que não são muito definidas ou conhecidas. A gente não sabe qual é a demanda nesse exato momento. É um momento de transição energética onde se busca sair de uma fonte dominante fóssil para uma outra matriz. Claro que esses minerais podem ter um papel aí, ou podem mudar completamente uma nova tecnologia, ou de repente não ser uma fonte viável economicamente ou sustentável.

Então há uma série de senões. O meu compromisso é conduzir um processo. Não serei eu que darei as respostas; irei colocar à mesa o debate mais amplo possível e instruído possível, dentro das evidências científicas e das circunstâncias atuais, para entregar um código de mineração que possa dar conta da missão da ISA. A missão é viabilizar a exploração comercial de forma a não comprometer os recursos ecossistêmicos, a funcionalidade dos ecossistemas no oceano profundo de maneira irreversível.

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