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Central Park: história dos 23 judeus que saíram do Recife para Nova York alimenta lenda

No dia 7 de setembro de 1654, um grupo de 23 judeus chegou a Nova Amsterdã, na época a capital da colônia holandesa na América do Norte, que no futuro viraria a cidade de Nova York. O grupo formado por homens, mulheres e crianças completava um périplo pelas águas do Atlântico, após deixar a cidade do Recife. Dessa epopeia, nasceu uma das maiores lendas da capital pernambucana e da história do Brasil colonial, a de que foram os judeus fugidos de Pernambuco que fundaram a megalópole americana.

Essa história completa 370 anos neste sábado e é alimentada em parte pela nostalgia e romantização da época do Brasil Holandês, em parte pela exacerbada autoestima pernambucana. "Factualmente, isso é parte da megalomania pernambucana junto com títulos muito sugestivos [de livros e exposições] que não se verificam à luz dos fatos históricos”, ressalta o historiador e professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Bruno Miranda.

Há também um componente histórico, já que as memórias da comunidade judaica existentes no Recife na época em que a cidade estava sob o domínio e invasão holandesa, período que durou de 1630 a 1654, ficaram soterradas e apagadas durante séculos após a retomada do território pelos portugueses. "A maioria dos documentos dessa época está nos arquivos holandeses ou americanos”, explica a historiadora do Centro de Referência em Inquisição Anita Novinsky Daniela Levy, autora do livro De Recife para Manhattan: Os Judeus na nova formação de Nova York.

Esse capítulo da história só ganhou mais notoriedade a partir da década de 1960, quando os estudos sobre a comunidade judaica no Brasil Holandês e a busca por resgatar os resquícios dessa época se intensificaram. Foi também quando a lenda passou a ser propagada com maior frequência.

Na verdade, explicam os historiadores, não se pode dizer que os judeus saídos do Recife fundaram Nova York, mas sim que eles integram o primeiro processo migratório judaico organizado para a América do Norte. Alguns dos 23 integrantes da embarcação que atracou em Nova Amsterdã foram, inclusive, fundamentais para o desenvolvimento da cidade, tendo participado da criação da Bolsa de Valores e da Câmara de Comércio novaiorquina.



Por que judeus foram da Holanda para Pernambuco

Já havia judeus em território nacional antes da chegada holandesa. Mas durante os 24 anos em que os holandeses estiveram no comando do território que compreende hoje parte dos estados do Maranhão, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Sergipe e Rio Grande do Norte, uma comunidade judaica se formou na região. Ela era constituída por cristãos-novos portugueses, ou seja, judeus convertidos ao cristianismo, que haviam saído de Portugal e se instalado na região do que é hoje a Holanda para retornar ao judaísmo.

"Nos Países Baixos essa comunidade tinha certas liberdades que não tinham na Península Ibérica. Eles não podiam fazer comércio a retalho, ter loja nas ruas, mas tinham liberdade de consciência, de professar a sua fé”, explica Bruno Miranda.

Nessa época, a Holanda tinha duas companhias das Índias – a oriental e a ocidental – para investir capital privado no comércio transoceânico. O objetivo era enviar barcos para exploração do Sudeste Asiático e das Américas, por isso o Brasil entrou na rota. Havia um plano de ocupação holandesa, que previa a entrega de passagens gratuitas ao Brasil, tolerância religiosa e liberdade de crença.

Parte dos judeus que estavam por lá decidiu ir ao Brasil Holandês em busca de oportunidades comerciais e já no território colonizado encontrou-se com outros cristãos-novos que haviam saído direto de Portugal. "Eles buscavam uma oportunidade econômica, pois como havia poucos lugares onde os judeus podiam viver, a Holanda já estava saturada", explica Daniela Levy.

A comunidade judaica trazia consigo duas expertises – falava português, por causa da ascendência, e entendia sobre o refino de açúcar, produto que motivava a chegada dos europeus ao Brasil. "Esses judeus que vem para cá não eram todos eles ricos. Alguns vêm e passam por muitas dificuldades financeiras e outros vem para cá como testa de ferro de grandes comerciantes e vão conectar o comércio dos Países Baixos à comunidade”, explica Bruno Miranda.

Em território nordestino, os judeus encontraram uma relativa liberdade religiosa ou, pelo menos, a chance de poder professar a fé em locais fechados. Muitos dos judeus que já estavam antes na colônia portuguesa mantinham a religião em segredo, mas com a chegada daqueles vindos para a ocupação holandesa, as práticas clandestinas foram abandonadas, e uma comunidade se criou com a constituição de duas congregações: a Tzur Israel e a Maguen Abraham.

Existe um mito de que eles tinham plena liberdade, sobretudo durante o período de governo de João Maurício de Nassau (1604-1679), mas não era bem assim. Houve momentos de disputas, em que tentou se impor restrições como não poder mais construir sinagogas ou casar-se com mulheres cristãs. "A única religião de culto aberto era a calvinista. Mas quando os holandeses vêm ao Brasil, eles vão aplicar as mesmas regras de liberdade que existiam nos Países Baixos", acrescenta Bruno Miranda. De acordo com ele, isso ajuda a trazer esses migrantes.

Há relatos de pelo menos duas sinagogas instaladas nessa época nos arredores do Recife, uma delas a Sinagoga Kahal Zur Israel, fundada em 1636 e considerada a primeira das Américas. O local ficava localizado na antiga Rua dos Judeus, atual Rua do Bom Jesus, e foi redescoberto após escavações no início dos anos 2000. Atualmente, é um museu e recentemente esteve envolto em uma polêmica, ao ser utilizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para discursar a apoiadores.



Saída dos judeus

No Recife, a capital da colônia holandesa, os judeus chegaram a participar da construção de projetos considerados pioneiros naquele período histórico, como a Ponte Maurício de Nassau, até hoje existente e a maior no país até então. Além disso, 63% do negócio de cobrança de impostos estava na mão deles.

Apesar de terem sofrido algumas perseguições de padres e calvinistas, os judeus participaram da reforma urbanística do Recife e atuavam como advogados, farmacêuticos e botânicos. "Eles tinham hospital, cemitério, instituição de caridade”, acrescenta Daniela Levy.

Mas esses anos de relativa tranquilidade acabaram quando os portugueses retomaram à região, após nove anos de guerras. Na época, o então governador, Francisco Barreto de Menezes (1616-1688) determinou que todos aqueles que não seguissem a religião católica deveriam sair de lá em quatro meses.

Após esse período, o destino deles seria a Inquisição. Quem fosse embora poderia levar consigo apenas os bens móveis, objetos pessoais e mercadorias como açúcar e pau-brasil. Havia no Brasil Holandês cerca de 300 famílias judias, totalizando entre 600 e 1,5 mil pessoas. Parte delas partiu em navios com destino à Holanda, outra parte tomou como destino a Inglaterra. Houve ainda aqueles cujo objetivo era chegar às colônias holandesas no Caribe e na América do Norte.



A saga entre Recife e Nova York

Os judeus que saíram do Recife e chegaram a Nova York, na verdade, não tinham a Grande Maçã como destino. Eles teriam saído da capital pernambucana no dia 26 de abril de 1654, no navio Valk. Há diversos relatos distintos de como foi a saga deles até chegar a Nova York. No livro 'The Early History of the Jews in New York', Samuel Oppenheimer conta que uma tempestade teria desviado a embarcação para a Martinica e, ao tentar reiniciar a viagem, o barco foi saqueado por piratas espanhóis.

Alguns passageiros morreram, outros foram resgatados por uma embarcação francesa, capitaneada por Jacques Lamot. Ele prometeu levar os sobreviventes até a ilha mais próxima, no caso a Jamaica, na época sob domínio espanhol e, portanto, onde estava presente a Inquisição. Por isso, aqueles que haviam se convertido ao catolicismo e retornado ao judaísmo foram detidos, considerados traidores da religião romana.

"Os que haviam nascido na Holanda e no Brasil, foram liberados, mas aqueles que eram cristãos-novos ficaram presos pela Inquisição. Nesse grupo que conseguiu sair, estavam os 23 que chegaram a Nova York. Eles negociaram com o capitão de outro navio, que os levou a Nova Amsterdã”, conta Daniela Levy.

O grupo que conseguiu chegar à América do Norte era formado por seis famílias, sendo seis homens casados, dois solteiros, duas mulheres viúvas e treze crianças. Eles não foram os primeiros judeus a desembarcarem em Nova York, mas são considerados os primeiros que permaneceram por lá.

Na época, a população estimada da região era de 500 a 600 pessoas. O grupo encontrou um povoado formado por um cais para os barcos, um galpão para fabricação de velas, uma padaria, um quartel militar e uma igreja. Animais como porcos e galinhas viviam soltos nas ruas. Havia imigrantes alemães, ingleses, escoceses, franceses e escravos africanos.

A chegada foi marcada pela oposição do então governador da colônia, Peter Stuyvesant. Eles ficaram presos por um tempo, sem poder desembarcar. Lá dentro, comemoraram o primeiro ano novo judaico festejado na região. Depois que a Holanda autorizou, eles conseguiram deixar a embarcação, mas ainda precisavam pagar a viagem. "Eles precisaram vender os móveis que haviam trazido. Foi uma chegada difícil, tudo o que eles conquistaram foi por briga judicial, como o direito de comprar terras, trabalhar e ter um imóvel", diz Daniela Levy.

Esse primeiro grupo, entretanto, fomentou uma comunidade que cresceu. No ano de 1655, outras duas embarcações chegariam do Recife, trazendo mais oito judeus. Entre os anos de 1656 e 1670, chegariam outros. Em 1664, sob o domínio inglês, a cidade mudou de nome e se tornou Nova York. Um dos descendentes desses judeus que saíram do Recife, Benjamin Mendes (1748-1817), fundou a Bolsa de Nova York, enquanto outro, Benjamin Cardozo (1870-1938), integrou a Suprema Corte Americana nos governos de Herbert Hoover (1874–1964) e Franklin Roosevelt (1882-1945).

A Estátua da Liberdade também guarda parte dessa história, já que um poema escrito por uma das descendentes dos judeus saídos do Recife, Emma Lazarus (1849-1887), está gravado numa placa de bronze embaixo do monumento. Atualmente, cerca de 1,4 milhão de judeus moram em Nova York, sendo esta a maior população judia do mundo fora de Israel.