Especialistas apontam que a regulamentação impulsionou bets no país e veem aumento da prática como questão de saúde pública. É preciso ficar atento para comportamentos que indicam vício.
"Perdi todo meu salário para o Tigrinho. Do mês retrasado para o mês passado, o salário caiu na conta e foi tudo embora em questão de um dia e meio", disse o mineiro Gustavo Martins, 28, em uma postagem nas redes sociais em junho. A publicação, segundo ele, foi um alerta para quem cogita entrar nesse universo. Seu primeiro contato com as bets foi há dois anos, em uma brincadeira com os amigos.
No entanto, a vontade de ganhar cada vez mais fez com que ele se tornasse dependente. "Quando eu comecei a ganhar dinheiro, a sensação era de total euforia, satisfação e prazer. Comecei com jogos de todos os tipos nas casas de apostas", conta à DW.
Nos primeiros meses, chegou a faturar R$ 50 mil, mas o desejo era sempre por mais. Por causa dos lucros, cogitou até deixar o emprego e viver apenas com os ganhos. Contudo, as apostas começaram a sair do controle, comprometendo seu salário.
O jovem não é o único a usar parte do orçamento familiar para essa finalidade. Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), em parceria com a AGP Pesquisas, mostra que 63% de quem aposta no país teve parte da renda comprometida com as bets. Outros 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamentos.
Esses dados refletem uma tendência preocupante, evidenciada ainda mais por um relatório divulgado pelo Banco Central nessa terça-feira (24), que revela que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em sites de apostas esportivas, somente em agosto. O valor equivale a 21,2% dos recursos distribuídos pelo programa no mesmo mês.
Ainda segundo o banco, 24 milhões de brasileiros fizeram ao menos uma transferência deste tipo no país desde janeiro. A maioria dos apostadores tem entre 20 e 30 anos e gasta cerca de R$ 100 por aposta. Este valor sobe de acordo com a idade. Brasileiros acima de 60 anos gastam uma média de R$ 3 mil em bets.
Como reconhecer a dependência em jogos?
Martins precisou perder o salário para notar que sofria com um transtorno. "Eu não me satisfazia em fazer R$ 200 ou R$ 300 por dia. Eu queria sempre fazer R$ 10, 20 mil todos os dias, então, às vezes, eu fazia mil reais e, ao invés de sacar, tentava mais e acabava que saía sem nada", relembra.
Assim como ele, muitos demoram a perceber a dependência. Segundo os especialistas, como os jogos e aplicativos estão instalados no celular e o aparelho é usado com frequência, fica cada vez mais difícil reconhecer a adicção.
O vício em apostas online não afeta apenas o comportamento dos jogadores, mas também altera o funcionamento do cérebro de forma semelhante a outras dependências químicas, como drogas e álcool. Segundo Luciana Becker, psicóloga e especialista em transtornos adictivos pela PUC Rio, o sistema de recompensa cerebral é diretamente impactado pelo jogo patológico.
"Quando uma pessoa ganha ou está prestes a ganhar, o cérebro libera grandes quantidades de dopamina, neurotransmissor associado ao prazer e à satisfação. Esse aumento gera uma sensação de euforia, incentivando o jogador a buscar repetir a experiência", explica.
Contudo, o problema se agrava com o fenômeno conhecido como tolerância: "Assim como ocorre com substâncias psicoativas, o cérebro passa a exigir apostas maiores para atingir o mesmo nível de prazer. Isso leva a um comportamento compulsivo, com os jogadores assumindo riscos cada vez mais altos".
Esse ciclo de dependência compromete a capacidade de tomar decisões racionais, perpetuando o comportamento adictivo. Em alguns casos, pode demorar muito tempo para que familiares e o próprio jogador percebam que o hábito está saindo do controle.
"O jogador patológico apresenta uma incapacidade de controlar o impulso de jogar, mesmo quando o jogo faz com que ele tenha tido, por exemplo, perdas financeiras significativas, prejuízos nas relações pessoais e problemas no trabalho", pontua Becker. O estresse por não jogar, mentiras e outros prejuízos na rotina também indicam a compulsão.
Desafio de saúde pública
Desde a regulamentação das apostas online em 2018, pelo então presidente Michel Temer, a prática de jogos de azar cresceu de forma expressiva no Brasil. Hoje, o país ocupa a terceira posição mundial em consumo de casas de apostas, atrás apenas dos Estados Unidos e da Inglaterra, de acordo com dados da Comscore, empresa especializada em análise de dados.
O aumento desse hábito tem gerado preocupação entre especialistas da saúde, que veem o jogo como uma questão de saúde pública. Bruna Lopes, psicóloga e pesquisadora do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (Proamiti), da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a busca por tratamento de problemas relacionados a jogos de azar triplicou desde a liberação.
"Tem sido uma epidemia. O perfil inclui pessoas mais jovens, vulneráveis, sem parceiro e em condições socioeconômicas mais baixas. Também observamos associação com episódios de depressão e ansiedade", esclarece.
Essa escalada nos números também foi confirmada pelo psiquiatra Marcelo Santos Cruz, coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas e vice-diretor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ele destaca que o problema não se limita aos jogadores, mas afeta profundamente suas famílias. Além disso, a falta de regulamentação efetiva e políticas públicas claras agrava o cenário. "O que vemos é um crescimento enorme dessas atividades, tanto nos jogos de celular quanto nas apostas esportivas, e muito pouco controle governamental. Isso é extremamente preocupante do ponto de vista da saúde mental", alerta o psiquiatra.
Tratamento e ajuda
Para que alguém consiga deixar a compulsão em bets, o tratamento deve ser multidisciplinar. É preciso que o indivíduo receba um acolhimento e não sofra julgamentos e estigmas. Para aqueles que conhecem alguém em situação semelhante, a recomendação é promover conversas abertas e empáticas.
Martins chegou a ouvir de pessoas próximas e de seus familiares que aquilo era "safadeza" e frescura, mas foi só depois de se abrir para a irmã e para o pai, que ele conseguiu ser ouvido e agora segue em acompanhamento com um psicólogo e psiquiatra. "Tomo remédio controlado para evitar impulsos. Não tenho acesso ao meu dinheiro, que é totalmente gerido ainda pelo meu pai", revela.
Para dar início a um tratamento adequado, o primeiro passo é que a pessoa tome iniciativa e queira receber ajuda. Também é recomendado usar aplicativos que bloqueiam sites de casas de apostas e cancelar ou excluir o cadastro para não receber nenhum tipo de notificação. "É importante trabalhar os gatilhos e fazer com que a pessoa consiga acessar outras atividades prazerosas", reforça Lopes.
O tratamento deve ser feito com um psicoterapeuta especializado em terapia cognitivo comportamental, e que possa direcioná-lo nas ações cotidianas, com o intuito de diminuir os riscos da prática. Em alguns casos, o uso de medicação também é indicado.
Caso o indivíduo não tenha recursos para fazer um tratamento privado, o recomendado é procurar Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que oferecem atendimento gratuito e que pertencem ao Sistema Único de Saúde (SUS). Existem ainda grupos de mútua ajuda, como os Jogadores Anônimos e os Devedores Anônimos, que podem auxiliar no processo.
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