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Oh, veneráveis ouvintes, meu nome é Bernardino e sou uma personagem de Shakespeare. Uma personagem minúscula nesta comédia que se aproxima. Antes que bocas sujas venham conspurcar o meu caráter, antecipo-me aos detratores e revelo-me sem medo das consequências: sou um prisioneiro condenado à morte, mas que se recusa a morrer. E também me recuso a fugir quando me dão a chance de escapar das grades. Recuso-me simplesmente a obedecer. Querem o meu pescoço? Só depois do almoço, e, como o relógio ainda não bateu meio dia, ainda é cedo demais para separá-lo do corpo uma vez que estômago nenhum pode se satisfazer sem ter boca para mastigar.
Oh, não, morrer de barriga vazia, nem pensar! Só os imbecis decidem morrer antes do almoço. E quando me pedem para morrer de tardezinha? Ah, não morro, não. Definitivamente não é o momento de escalar os umbrais da eternidade neste lusco-fusco que não se decide se ainda é dia ou se já é noite. Seria uma entrada pavorosa no Undiscovered Country de Hamlet, no país das almas penadas, uma vez que não saberia responder a qual turno pertenço. Ah, veneráveis ouvintes, eu não obedeço. E não obedeço nem mesmo a Shakespeare, já que neste colóquio eu me faço de protagonista, coisa que não o sou nas páginas dramáticas ou quando emprestam minhas palavras para torná-las audíveis no palco do teatro. Sou minúsculo, pequenininho, apareço só em uma cena lá no meio da trama, poucos me notam, e, no entanto, é nesta miudeza que reside a minha esperteza, pois é mais fácil esgueirar de lá para cá sem a vigilância dos refletores apontados para o nosso nariz. E nas sombras faço o meu território. Daqui de onde não conseguem me enxergar direito é onde consigo eu enxergar melhor. Dito isto, junto minha agilidade com à generosidade do rádio que não poupa esforços no quesito imaginação. Eu, Bernardino, um condenado à morte, faço-me rei.
Medida por Medida é uma peça teatral que insiste no tema da morte. Ora vejam só, uma comédia sombria, portanto. Na verdade, a maior parte da ação se passa em uma prisão. Mas, não! Eu não sou a personagem principal, já disse. Bernardino é o meu nome, um condenado à morte que mora na cela ao lado da cela de Cláudio, esse sim o epicentro da ação – acusado de fornicação e, pobrezinho, ele também com o pescoço a perigo. Medida por Medida conta a história de um governador corrupto que quer distorcer a justiça em seu benefício e satisfazer assim a sua própria cobiça. Isso já é engraçado, acho eu. Porque no fundo, no fundo, é disto que é preciso rir: do teatro patético destes que se colocam na posição de mandar, e, principalmente, destes outros que sem meios para resistir, resolvem obedecer. Sem meios uma vírgula, porque eu resisto sim. Não morro. Sou um condenado à morte que se recusa morrer.
Uns sobem à custa do pecado, outros caem por causa da virtude. Medida por Medida. Se esta é uma fábula cristã eu não saberia responder. Há tempos que deixei de decorar os versículos da bíblia para me dedicar a assuntos mais nobres como a contagem de estrelas que vejo no céu através das grades do meu claustro, número que tento comparar com a quantidade de pulgas que caminham em marcha pelo chão úmido de minha cela. Pelo andar da carruagem, a julgar pelas mordidas que levo neste meu couro gasto, capaz de haver mais constelações pulguentas aqui embaixo que galáxias misteriosas lá em cima. E ainda dizem que Deus está lá, ao lado das estrelas... Por mim, ficaria bem mais satisfeito se o diabo viesse em pessoa me emprestar uns venenos para matar esses seres quase minúsculos. Mas, não posso culpá-los: é graças às pulgas que meu credo elevou-se a uma espiritualidade sacrossanta, afinal, quem duvidaria de que um percevejo – primo da pulga - é mais filho de Deus que um pastor que se diz emissário de Deus? O primeiro morde porque tem que morder, o outro morde o convencendo de ser dono de um passaporte para morar junto a Deus. Eu, Bernardino, personagem minúsculo e desimportante, criminoso de crimes hediondos, um miserável que aparece só no meio da trama para se recusar a morrer, recuso-me a acreditar. Sou o mais cético personagem desta peça cética. Antes uma pulga que morde aqui embaixo que uma falsa ladainha que promete alívio lá em cima. Amém.
E este é um programa que tenta comprovar que Shakespeare é o grande decifrador da alma humana. Seja na Inglaterra elisabetana ou no Brasil de hoje, ele permanece sempre vivo, bastante próximo a cada um de nós.
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