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- Eu sou um ator, isso sim eu tenho consciência de ser. Converso com vocês daqui, deste meu camarim, deste meu refúgio, daqui de onde consigo enxergar tudo melhor, de onde posso escutar tudo com mais atenção. Daqui a instantes a cortina irá subir e daremos início a mais uma sessão, a mais um espetáculo de Sir William Shakespeare, ao espetáculo mais famoso e consagrado de Sir William Shakespeare.
Eu estou morto... Morri em um duelo de espadas, através da ponta envenenada de uma espada. Era para ser um duelo esportivo, uma disputa como tantas outras, mas graças ao plano arquitetado pelo meu querido tio Cláudio, o bondoso Laertes que desde sempre fora o meu fraterno amigo, feriu-me propositalmente no braço. Ele também morreu. Meu tio morreu. Minha mãe, a rainha... morreu tomando em uma taça o líquido misturado ao mesmo veneno que vitimou a todos nós. Polônio, aquele rato bajulador, está morto... Rosencrantz e Guildenstern igualmente despachados para o país desconhecido de onde até hoje ninguém voltou. Ofélia também está morta, afogada em sua própria ingenuidade pueril. Pobre Ofélia. Enfim... Todos morreram nesta história... Um elenco de defuntos, é o que somos. Mas nada de lamentações, por favor, todos aqui morrem e ressuscitam depois para recontar a mesma fábula. Somos almas penadas: estamos sempre entre lá e cá. Por que a surpresa? Assim são os atores. Morremos a cada final de espetáculo – a cortina desce direto do urdimento para nos ceifar a cabeça bem aqui ó...,Um merecido fim para todos aqueles que se devotam a zombar das contradições do enredo do mundo. Um ofício perigoso esse, senhoras e senhores... só malucos o aceitam.
Todos da corte de Elsinore me tomavam como um sujeito perturbado. Pudera! Como manter-se são num palácio em que sua própria mãe, semanas depois da morte do seu próprio pai, resolve se casar com o seu próprio tio...? É como se os salgadinhos oferecidos no velório fossem aproveitados para o buffet das bodas! Aceita uma coxinha, minha senhora? Está fresquinha, foi servida de antepasto no enterro de vosso marido... Uma festança em cima do caixão de um homem honrado. Que espécie de gente é essa? Que espécie de sujeito é esse meu tio que rouba de uma só vez a mulher do falecido rei e a coroa que ele ostentava há pouco tempo, ele, o seu irmão? E agora a alma penada de meu pai aparece no frio da madrugada, quando estão todos dormindo, para revelar a mim que a morte do rei fora um assassinato cometido por ele, pelo meu tio Cláudio. Como não surtar?
Hamlet é um ator, e também personagem. Nem somente uma coisa, e tampouco outra, mas as duas faces contrárias e complementares ao mesmo tempo. Essa indeterminação de identidades é o que o torna misterioso, e igualmente perigoso, já que é basicamente impossível prever suas reações em um governo que exige de todos a representação de papéis muito bem delimitados. Hamlet não se encaixa em uma cena de psicologias fixas, ele é essencialmente mascarado, anti-psicologizado por uma ideia pura de EU. Por essa razão, Hamlet é libertário e transgressor, uma força que não cansa de emanar a crise e a revolta frente à estagnação de um mundo resignado pelos tratos firmados. Sua resistência em ser uma coisa só é a ambição e o princípio próprios do teatro, onde a regra é subir ao palco para dar conta de transitar em um espaço instável de uma outra vida, uma vida inventada e múltipla que se não é exatamente real, é mais reveladora, porque acessa os mecanismos da consciência através da imaginação.
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