Nesta sexta-feira, 12 de março, completa um ano da primeira morte causada pela Covid-19 no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Desde então, mais de 273 mil pessoas morreram no país devido à doença, o que leva suas famílias a enfrentarem o processo de luto em meio às restrições da pandemia, muitas vezes sem nem mesmo poderem se despedir do ente querido em um velório, ou cerimônia de enterro.
Para a psicóloga Natália Silva, do Grupo Reinserir, “três fatores pesam neste processo de luto: a impossibilidade dos rituais fúnebres, o distanciamento da rede de apoio como fonte de consolo nesse momento difícil e a possibilidade de perder mais alguém por conta da doença."
Ela também ressalta a questão do isolamento social como um fator que desafia o processo de luto. “O toque, o abraço, o olhar... O contato presencial abrange todas essas possibilidades. Não que pelos pixels a gente não consiga trocar carinho, mas o contato presencial sugere muito mais aproximação.”
A família de Marcelo Cavalcante está entre as mais de 273 mil famílias no Brasil que passam pelo luto neste momento. Ele perdeu a mãe por conta do coronavírus em 6 de junho. “Nossa família é muito grande e unida, mas tivemos que fazer um velório com 9 pessoas em 15 minutos. Isso foi uma das coisas mais chocantes para nós, e assustadoras. Não tivemos conforto. Na hora, foi assustador não ter as pessoas ao nosso lado.”
“Essa pandemia é chocante nesse aspecto. O luto é histórico e ter o amparo das pessoas é fundamental, é algo importante e que a gente não teve. Recebi mensagens e tudo mais, mas notei que as pessoas estavam preocupadas com parentes e amigos que estavam com Covid-19 também”, completa.
Dona Niedja Cavalcante tinha 88 anos, nasceu em Maceió, mas se mudou para São Paulo na juventude, onde se casou e teve seus oito filhos. Durante a pandemia, Marcelo conta que a mãe não saiu de casa nenhuma vez, apenas tinha contato com o marido e alguns filhos. No final de maio, o marido de Dona Niedja começou a sentir alguns sintomas do coronavírus, enquanto ela apresentou dores abdominais. O marido foi medicado, e dias depois, Marcelo levou a mãe para um hospital.
“O médico falou que ela estava respirando bem, mas que estava com o pulmão um pouco tomado. Por causa da idade, eles sugeriram interná-la”, explica. Na manhã do dia seguinte, após testar positivo para a Covid-19, ela foi transferida para a UTI por conta da baixa oxigenação. “Não permitiram que eu a acompanhasse na UTI. Mas no meio daquela confusão toda, minha mãe parou, olhou pra mim e deu um sorriso. Foi a última vez que eu a vi com vida”, conta. Neste dia, Dona Niedja precisou ser intubada e depois de oito dias faleceu.
“Minha filha deu uma boa definição de tudo o que aconteceu. Foi como um livro muito bom, cheio de emoção e aventura, mas quando está chegando nos últimos capítulos, as páginas foram arrancadas e você não sabe o final da história. Foi assim que nos sentimos com a morte da minha mãe por conta da Covid-19.”
Niedja Cavalcante
Dona Niedja entre os oito filhos
Fases do Luto
A psicóloga Natália Silva explica que “cada pessoa vive o luto de uma maneira muito singular. Algumas pessoas ficam em luto por meses, outras ficam em luto por anos. A gente costuma falar dentro da psicologia que o “luto saudável” gira em torno de mais ou menos um ano, que é quando o sujeito vai passar pelas cinco fases do luto - negação, raiva, negociação, depressão, aceitação.”
“Durante um ano, normalmente a pessoa passa por essas fases até que ela possa ir elaborando e retomando suas atividades de uma forma mais assertiva”, conclui. A psicóloga alerta que se em um ano após o luto, a pessoa não conseguir voltar às suas atividades, sentir tristeza, ansiedade, raiva e negação, pode ser muito importante buscar um tratamento psicológico especializado.
A farmacêutica Yara Bandeira passa por um processo de luto ainda muito recente. Ela perdeu o pai para o coronavírus em 19 de fevereiro. “Até agora não quero que meu luto chegue, pelo fato de ser muito recente. Tento me esconder viajando, no meu namorado e na minha sobrinha. Meu luto existe, mas ainda não quero passar por ele.”
José Alcides Bandeira ficou em isolamento em casa desde o início da pandemia porque fazia parte do grupo de risco da doença, era diabético e hipertenso. “Quando a empresa em que ele trabalhava fechou, precisou encontrar um novo emprego e começou a atuar como motorista de turistas em Fortaleza, durante o período pós-réveillon. Acho que pode ter sido em uma dessas viagens que ele se infectou pelo coronavírus”, conta Yara.
Em 23 de janeiro, José começou a sentir os primeiros sintomas da doença, estava com dor de garganta e febre. Dias depois, foi ao médico mas voltou para casa com o diagnóstico de gripe. Após apresentar febre alta e começar um tratamento com um antibiótico, ele foi internado com falta de ar e testou positivo para a doença. José esperou 11 horas por um leito de UTI que não apareceu, até ser transferido para o Hospital Leonardo Da Vinci, unidade que o governo do Ceará comprou para o tratamento da Covid-19.
Com a piora do quadro clínico, o pai de Yara precisou ser intubado. No dia 19 de janeiro, após 21 dias de intubação, quando apresentou melhora, a equipe de médicos começou a se programar para a extubação. Minutos depois que Yara recebeu a notícia, o quadro de José piorou de repente, e aos 52 anos, ele faleceu devido à sobrecarga cardíaca da grande quantidade de remédios. A família não conseguiu fazer um velório por conta da pandemia, houve apenas a cerimônia de sepultamento com o limite de dez pessoas.
“As pessoas se vão, mas ficam as lembranças e a gente recebe sinais o tempo todo de que elas estão bem. Seja por sonhos, passarinhos, flores e cheiros. Eu sei que onde ele está, ele está bem”, diz Yara.
José Alcides e Yara Bandeira
Viver o luto de dois parentes
Jaqueline Casagrande perdeu a mãe e a avó para a doença. Moradora de Rio Bananal, no interior do Espírito Santo, ela conta que a avó começou a passar mal na mesma semana em que morreu. “Ela estava com muita fadiga e falta de ar. Levamos ao hospital, a princípio com suspeita de pneumonia, e também de Covid-19. Ela ficou internada e precisou ser intubada, foi uma situação muito repentina, pegou a família toda de surpresa porque minha avó sempre foi uma pessoa muito forte e com muita saúde”, conta.
Em menos de três meses que Jaqueline perdeu a avó, sua mãe começou a apresentar sintomas da doença. Ela já havia sido infectada uma vez, e alegava que a saúde não era mais a mesma. "Muitas pessoas falam que talvez a Covid-19 tenha deixado sequelas no pulmão, causando pneumonia, mas nada foi comprovado", explica.
Foram duas idas ao hospital, da segunda vez, Jaqueline a acompanhou. “Via a minha mãe sofrendo muito e não tinha nada que eu pudesse fazer, ela faleceu e a causa de sua morte foi um edema pulmonar, causado por pneumonia”.
Ela também relata que é muito difícil passar pelo luto sem o apoio presencial da família e dos amigos. No caso da avó, não houve velório e muitos parentes não puderam se despedir. Já com a mãe, como a morte não foi por Covid-19, o velório aconteceu. “Foi um pouco mais tranquilo”, diz.
Jaqueline e sua avó, Alvina Pagung Casagrande
Cacilda Sangali Casagrande, mãe de Jaqueline
“1 ano e parece que nada mudou”
”Eu passei meses isolada, vivendo o luto só com a minha mãe e com a minha irmã, sem poder ser confortada por ninguém, sem poder ganhar um abraço das pessoas que eu amo, sem poder fazer nada para me distrair. Foi a pior coisa que passei”, conta Larissa Marques que enfrenta o luto pela morte do pai.
Em 2009, Cícero Marques descobriu que estava com câncer de mama. Começou a tratar a doença e depois passou por uma cirurgia; enfrentou muitos anos de tratamento contínuo em busca da cura. Ele e a família descobriram no final de 2014 que o câncer havia se espalhado pelos ossos da coluna, por conta disso, não era possível fazer uma nova cirurgia.
Cícero precisava ir ao hospital uma vez por semana, para fazer as sessões de quimioterapia, mas seu caminho foi interrompido com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Ao passar mal em uma das sessões, foi internado e descobriu que testou positivo para o vírus. Um dia depois, ligou para a família e disse que seria intubado. Por conta de complicações causadas pelo câncer e pela Covid-19, Cícero faleceu aos 51 anos, em 5 de abril.
“Faltando pouco menos de um mês para completar um ano da morte do meu pai, minha mãe está com Covid-19. Volta o medo, a angústia e todas as inseguranças. Todos os dias esperamos, enfim, poder voltar a viver sem máscara, sem medo e lembrar apenas dos bons momentos ao lado do meu pai", conta Larissa.
Cícero Marques
Pós-pandemia
A psicóloga Natália Silva diz que “o luto é sinônimo de perda, e a gente não gosta de perder. Tentamos fugir das perdas porque elas vão nos sugerir dor, saudade, tristeza e vazios. (...) Espero que a experiência da pandemia possa contribuir para que a gente consiga falar sobre perdas como um todo.”
“Acho que depois da pandemia vai ser melhor, porque quando te avisam que alguém morreu, você não pergunta onde é o velório e quando vai ser o enterro, porque você sabe que não pode ir, que ninguém pode estar. Acho que depois disso, as pessoas vão se aproximar mais”, afirma Marcelo.
REDES SOCIAIS