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Os mananciais termais qde Yellowstone
Getty Images
As fontes termais de Yellowstone abrigam microorganismos capazes de viver em condições extremas

"Definitivamente vivo."

Thomas Brock anotou essas palavras há mais de 50 anos, em um dos cadernos que levava em suas investigações de campo em Yellowstone, nos Estados Unidos.

Era a década de 1960 e o cientista americano se referia a um dos organismos incomuns que acabara de encontrar em uma das fontes termais do parque.

Foi em um desses mananciais que Brock descobriu uma bactéria adaptada à vida em altas temperaturas, que ele chamou de Thermus aquaticus.

A bactéria, hoje conhecida pelos especialistas, acabaria revolucionando a biotecnologia e tornando possíveis os testes PCR, as provas mais confiáveis usadas em todo o mundo para diagnosticar a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.

O trabalho pioneiro de Brock acabou vinculado à pandemia do novo coronavírus, por meio de uma sequência de episódios na história da ciência.

Brock, hoje com 90 anos, se sente orgulhoso ao pensar que sua descoberta está ajudando a diagnosticar casos de covid-19 e auxiliando no combate ao novo coronavírus.

"Eu sempre vi a minha descoberta como um bom modelo para estudar a biologia molecular da vida em altas temperaturas", contou Brock, que é professor emérito de microbiologia na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos.

Thomas Brock descobriu bactéria fundamental para análises
Science Photo Library
Thomas Brock descobriu em fontes termais de Yellowstone a bactéria que foi fundamental para testes PCR em laboratórios

Apesar de sempre considerar que o modelo tivesse importância para a ciência, o estudioso confessa que nunca pensou que a descoberta fosse, um dia, ter um impacto tão importante. "Não imaginava isso nem em um milhão de anos", revela por telefone à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC), de sua casa em Wisconsin, nos EUA.

A descoberta da bactéria

Brock jamais havia visto fontes termais antes de chegar ao parque de Yellowstone em 1964.

Depois da primeira visita ao local, voltou ano após ano, impulsionado pelo desejo de investigar quais formas de vida poderiam subsistir naquelas piscinas naturais.

Brock e um de seus estudantes, Hudson Freeze, cultivaram bactérias de várias fontes termais.

"Achamos a Thermus aquaticus no manancial Mushroom Spring, a 75 graus centígrados, onde há um gradiente térmico, pois nas saídas do manancial a temperatura abaixa para uns 35 graus. Nesse momento, a Thermus era o micro-oganismo mais termófilo (que ama ou tolera o calor) conhecido."

"A descoberta mostrou que outros pesquisadores estavam errados sobre os limites de temperatura em que pode haver vida", disse Brock à BBC Mundo.

Nas fontes termais de Yellowstone e em outros lugares do planeta, a temperatura pode exceder 90 graus.

A bactéria que Brock chamou de Thermus aquaticus
Science Photo Library
A bactéria que Brock chamou de Thermus aquaticus sobrevive a altas temperaturas

"É uma água subterrânea que foi acumulada em camadas profundas e aquecida pelo calor derivado do magma do centro da Terra ou por ação vulcânica", explicou à BBC Mundo a bióloga Sandra Baena, professora da Pontíficia Universidade Javeriana, em Bogotá, na Colômbia, e pesquisadora de micro-oganismos que vivem em condições extremas.

"Se você tem água quente no subsolo da Terra e possui falhas geológicas, ou seja, rachaduras, a água procurará uma saída."

A descoberta de uma enzina

Os mecanismos biológicos que permitem que bactérias como a Thermus aquaticus possam sobreviver a altas temperaturas em fontes termais eram um tesouro a ser explorado pela ciência.

Na década de 70, a pesquisadora Alice Chien e outros estudiosos da Universidade de Cincinnati, em Ohio, nos Estados Unidos, isolaram uma das enzimas da bactéria.

A nova enzima recebeu o nome de TAQ polimerase (TAQ é uma referência a Thermus aquaticus).

A descoberta dessa enzima resistente a altas temperaturas acabou cruzando com outra história.

E isso acabaria sendo crucial para um campo da ciência que avançava a passos lentos na segunda metade do século 20: o estudo do DNA.

Thomas Brock
Jeff Miller University of Wisconsin-Madison
Thomas Brock sente orgulho de sua descoberta que está ajudando a salvar vidas

A necessidade de multiplicar o DNA

"Entre meados das décadas de 70 e 80, surgiram técnicas que permitiam manipular as moléculas de DNA diretamente, as chamadas técnicas de DNA recombinante. Elas permitiam romper as moléculas de DNA em fragmentos para que pudessem ser analisadas", explicou à BBC Mundo Miguel Garcia-Sancho, professor e pesquisador de História da Ciência na Universidade de Edimburgo, no Reino Unido.

"Porque até então, como a molécula de DNA era muito longa, era muito difícil aplicar técnicas analíticas nela", pontuou.

Além dos métodos de manipulação de fragmentos de DNA, também surgiram técnicas de sequenciamento de DNA, que permitiram ler a estrutura desses fragmentos.

Os avanços tornaram possível investigar o DNA em uma escala nunca antes imaginada. Mas havia um grande obstáculo.

"Um problema que todo mundo estava enfrentando era obter DNA suficiente para analisar os fragmentos. E os especialistas também precisavam de uma quantidade suficiente para sequenciar o DNA", explicou García-Sancho.

"A falta de DNA foi um problema para muitos cientistas em muitos campos", relatou o especialista.

A invenção da PCR

Um dos cientistas que buscava sintetizar ou produzir DNA na década de 80 era o americano Kary Mullis, um bioquímico da empresa biotecnológica Cetus Corporation, na Califórnia.

Mullis desenvolveu uma técnica para amplificar ou copiar milhões de vezes uma sequência específica de DNA, a chamada PCR ou reação em cadeia da polimerase — utilizada nos atuais testes para a covid-19.

Kary Mullis
Getty Images
Kary Mullis recebeu o Nobel de Química em 1993 pela invenção do método PCR

Kary Mullis chegaria a receber o Prêmio Nobel de Química em 1993 "por sua invenção do método PCR", mas a técnica demorou muitos anos para ser adotada em larga escala.

Essa demora se deve, em partes, ao fato de que Mullis era um desconhecido para a comunidade científica. "Ele era um bioquímico que trabalhava em uma empresa, enquanto os cientistas que trabalhavam no sequenciamento de DNA eram biólogos moleculares em instituições de prestígio como o MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts ", disse García-Sancho, que entrevistou Mullis pessoalmente.

O aquecimento do DNA

O método desenvolvido por Mullis aquece e esfria a amostra de DNA em ciclos relativamente rápidos.

O aquecimento separa os fios da dupla hélice do DNA.

E logo a temperatura abaixa quando uma enzima, a DNA polimerase, copia ou replica cada fio separadamente.

Ilustração do DNA
Science Photo Library
A técnica PCR exige aquecer o DNA para separar os fios das hélices duplas

Quando é possível obter, por este método, novas cópias, começa um novo ciclo e as cópias são aquecidas outras vezes para separar os fios, repetindo o processo diversas vezes.

Cada etapa produz mais cópias de DNA e a atividade da enzima é controlada pela temperatura, em um processo que pode levar mais de 30 ciclos.

A enzima que revolucionou a técnica PCR

É nesta técnica PCR que entra, nessa história, a bactéria encontrada em Yellowstone.

“A PCR exige temperaturas que oscilem entre os 55 ̊C e os 95 ̊C, por isso necessitamos de enzimas que possam suportar altas temperaturas e se manter ativas ao longo da reação", explicou à BBC Mundo Domenica Marchese, pesquisadora do Centro Nacional de Análises Genômicas (CNAG-CRG) de Barcelona.

A enzima, ou polimerase, usada na PCR para copiar o DNA é uma proteína. E, normalmente, as proteínas expostas a temperaturas muito elevadas perdem a estrutura original.

"Vamos imaginar, por exemplo, uma espiral de metal, como a que é usada para encadernar um livro. Se abrirmos a espiral e ao esticarmos, ele deixará de ser útil para a sua função. O mesmo acontece, normalmente, com a DNA polimerase quando ela é exposta a temperaturas elevadas e perde sua capacidade de sintetizar o DNA", disse Marchese.

Ilustração de um teste de covid-19
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A enzima da bactéria de Yellowstone revolucionou a técnica PCR, usada na atual pandemia do novo coronavírus

Quando Kary Mullis inventou a técnica PCR, começou usando enzimas de micro-organismos como as bactérias Escherichia coli — que vivem em nosso trato digestivo, compondo a flora intestinal —, que sobrevivem a temperaturas próximas a 37 ̊C.

O problema era que, durante a PCR, em cada ciclo, ao chegar aos 95 ̊C, a polimerase perdia suas atividades e era necessário adicionar uma nova para o próximo ciclo da reação. "Isso era muito tedioso e envolvia custos muito altos para cada reação de PCR", pontua Marchese.

A mudança fundamental foi a introdução da TAQ polimerase, a enzima isolada da bactéria encontrada por Brock, que resiste a altas temperaturas sem perder a estrutura.

Esta enzima tem sua máxima atividade a 72 ̊C e pode resistir até cerca de 40 minutos a 95 ̊C.

"A TAQ polimerase representou uma descoberta revolucionária", disse Marchese.

Uma lição para a ciência

A técnica PCR revolucionou a biotecnologia e facilitou as análises de DNA em diversos campos como medicina forense ( ajudando a identificar autores de crimes), análise de paternidade e parentesco e diagnósticos de doenças.

"Acredito que a PCR é a responsável por tornar a análise de DNA realmente importante. Isso trouxe consequências para o mundo real", disse García-Sancho.

Para Garcia-Sancho, foi graças a essa técnica que a análise de DNA se tornou pública e as pessoas perceberam que o método é muito importante. "Podemos ver isso (a importância do método) agora, com os testes de covid-19", declarou.

Profissional de saúde fazendo o teste em uma paciente
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A técnica PCR é a mais confiável para detectar material genético do vírus que causa da covid-19

Thomas Brock disse que o impacto em massa de sua descoberta traz uma lição profunda sobre a ciência.

Em seu discurso para ser aceito como doutor honorário da Universidade de Wisconsin, em 2019, Brock citou seus estudos em Yellowstone. "Eu estava livre para fazer o que é chamado de pesquisa básica. E algumas pessoas pensaram que era inútil, porque não se concentrava em propósitos práticos."

"E perguntavam: para que servirão as bactérias das fontes térmicas de Yellowstone?".

"A enzima extraída da Thermus aquaticus é uma das mais importantes do mundo. Ela fez ser possível a PCR e uma investigação moderna do DNA", disse Brock.

A bactéria de Yellowstone demonstra, segundo Brock, a importância de "estabelecer os princípios básicos nos quais muitas formas de trabalhos científicos podem se basear".


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