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Sempre gostei de garimpar quadrinhos velhos e raros em sebos e bancas velhas. Uma vez, quando criança, eu estava na Vila Sabrina e achei uma edição número um de uma revista – ótimo, comecemos pelo começo. Nunca havia ouvido falar naquele super-herói, mas por que não dar uma chance? E, aí sim, fomos surpreendidos novamente. “Miracleman” se revelou uma das melhores histórias de super-heróis que já li na vida.

Com o passar dos anos, consegui os números 2, 3 e 4, e ales atingiram as minhas expectativas. Era bacana demais, uma história de super-heróis que superava todas as demais que saiam no Brasil na época - foi há muito tempo, quando havia apenas seis títulos mensais da Marvel e quatro da DC saindo mensalmente. E eu queria muita ler a continuação de “Miracleman”. E nem imaginava que seria tão difícil: alguns processos judiciais (sim, no plural) que envolveram ao menos cinco (!) editoras de quadrinhos em dois países diferentes.

Tentando resumir aqui... A editora norte-americana Fawcett publicava, mais de seis décadas atrás, um super-herói que fazia muito sucesso: o Capitão Marvel, hoje conhecido como Shazam. Sua rival DC a processou, acusando o Capitão Marvel de ser plágio do Superman. A DC venceu o processo e a Fawcett parou de publicar histórias do personagem. Fim da história... só que não.

O Marvel também fazia sucesso na Inglaterra, e a editora que republicava suas histórias por lá ficou sem ter material para suas revistas que vendiam tão bem. Então, copiou descaradamente o Capitão Marvel – seria um caso de plágio do plágio?

O fato de uma criança apenas precisar dizer uma palavra mágica para virar o super-herói mais poderoso do mundo se manteve, bem como a inocência e a ingenuidade das histórias. Mas algumas coisas tiveram de mudar.

Capitão Marvel virou, assim, o Marvelman – que, por sua vez, havia sido considerado plágio do Superman. Pequenas mudanças: a palavra mágica: “shazam” virou “kimota” (“atomic” ao contrário); os nomes dos parceiros “Miss Marvel” e “Capitão Marvel Jr.” Viraram “Young Marvelman” e “Kid Marvelman” etc. Mais tarde, o Marvelman viraria Miracleman, e seus parceiros, Young Miracleman e Kid Miracleman.

Mas isso não é só confuso. O legal mesmo é o que aconteceu dentro das histórias.

A primeira aparição moderna do Miracleman – essa que eu li o número um quando criança – saiu em 1982 na Inglaterra e foi escrita por ninguém menos do que Alan Moore. O primeiro capítulo saiu na revista britânica “Warrior” em maio de 1982, um ano antes de Moore estrear na DC – e revolucionar o gênero dos super-heróis com sagas como a do Monstro do Pântano e “Watchmen”.

Não é à toa que eu gostei tanto. Alan Moore já era incrível. Pensava longe: as histórias eram intricadas. A inocência, a ingenuidade e o humor infantil deram vez a páginas cheias de ação, drama e um nível de violência que não seria tolerado nas HQs americanas de super-heróis da época. Havia um suspense incrível, projetos secretos, teorias da conspiração, viagens no tempo e entre planetas. E tudo amarradinho.

Foram apenas 16 números de Miracleman por Alan Moore – distribuídos em sete anos (!) de publicação por inúmeros problemas -, mas foram o suficiente. As histórias são agrupadas em três grandes arcos de histórias: “Sonho de Voar”, “A Síndrome do Rei Vermelho” e “Olimpo”. As discussões são profundas e muito entranhadas ao gênero dos super-heróis. Se algum humano adquirisse superpoderes, o que o impediria de se achar superior aos demais? Ou de simplesmente impor seus desejos sobre os demais? O que garante que ele siga as leis? Ou que, no mínimo, seja moral e ético?

As histórias ficaram excelentes. E quando Moore deixou o personagem, em 1989, era difícil acreditar que continuassem tão boas. Mas quem assumiu o título foi... Neil Gaiman – sim, aquele de Sandman.

Gaiman planejou três grandes arcos de histórias para Miracleman: “A Era de Ouro”, “A Era de Prata” e “A Era das Trevas”. O primeiro teve oito capítulos e, mantendo a mesma pegada sombria e dramática de Moore para um super-herói anteriormente tão pueril, Gaiman manteve a excelência da revista.

Aí veio “A Era de Prata”, em que o então promissor Mark Buckingham ilustrava o roteiro de Gaiman. O primeiro capítulo saiu em junho de 1992, mais de um ano depois (agosto de 1993) e... a editora faliu. E aqueles rolos judiciais todos que mencionei acima começaram. Eu e os demais leitores não tivemos acesso à sequência da “A Era de Prata” e muito menos às histórias da “A Era das Trevas”, que concluiria a fase Gaiman.

Neil Gaiman virou um popstar com o sucesso de “Sandman”, publicado entre 1989 e 1998, e dizia constantemente que queria concluir esta história, que seria importante para ele. Alan Moore já havia publicado “Watchmen” e “V de Vingança” e atingido uma fama que ultrapassava os quadrinhos. E, mesmo assim, nada da continuação de Miracleman.

Muitas outras exploraram motes anteriormente abordados por “Miracleman”, especialmente a de como uma pessoa normal reagiria ao saber. Dos quadrinhos, por exemplo, temos “The Boys”, “Esquadrão Supremo – Poder Supremo” e “Wanted”. No cinema, “Brightburn - Filho das Trevas”, “a linda trilogia de M. Night Shyamalan iniciada por “Corpo Fechado”, e por aí vai.

Até que, finalmente, os problemas judiciais foram resolvidos. Demoraram décadas, mas foram resolvidos. A norte-americana Marvel publico “A Era de Prata”, reescrita para sete capítulos – o último foi lançado no início deste ano.

Após décadas, Neil Gaiman, o ídolo pop por trás de “Sandman” e tantos outros sucessos, concluiu uma história iniciada décadas atrás. Buckingham, agora consagrado, não só voltou para o projeto como redesenhou páginas para deixar o resultado visualmente ainda mais bonito.

E a repercussão foi um silêncio quase absoluto.

Como assim?

O próprio Gaiman comentou, nas redes sociais, sobre este silêncio que imperou na mídia especializada e entre os fãs: “É interessante ver a imprensa sobre quadrinhos comentando ‘Por que é que não se fala mais de Miracleman: The Silver Age’? Entretanto, recebemos o tipo de crítica que aqueles de nós que fizeram quadrinhos nos primeiros tempos sonhavam como uma espécie de graal”. O escritor se referia a uma crítica publicada no “The New York Times” no início deste mês de maio.

A crítica do NYT é positiva. Destaco um trecho: “Com ‘The Sandman’, Gaiman foi a última pessoa a conduzir bem uma série de super-heróis de sucesso, que se desenrola entre as massas de deuses licenciáveis e monstros da DC, com uma conclusão satisfatória. Nele e nas suas histórias de Miracleman, há uma espécie de desejo de saída, tanto dos mundos imaginários que as personagens estão a ultrapassar, como para os leitores, que têm de pôr de lado as infantilidades e começar a conhecer a si próprios.”

Fico surpreso com a falta de repercussão de uma obra que traz o nome de Neil Gaiman entre seus autores – especialmente essa, tão especial. Talvez o gênero dos super-heróis esteja saturado de questionamentos como os apresentados nos anos 80 por Moore e Gaiman na série; talvez os leitores de quadrinhos não estejam mais tão empolgados com super-heróis; talvez Miracleman seja, aos olhos do leitor de hoje, apenas mais um herói lutando por espaço contra concorrentes de peso como Batman, Homem-Aranha e Wolverine. Um personagem pequeno, aliás, se comparado a eles.

Ainda não li “Miracleman: The Silver Age”. Mas não vou deixar passar a oportunidade. Talvez por nostalgia, mas principalmente por ser fã do trabalho de Neil Gaiman. Ele me impressionou quando escreveu HQs de super-heróis (“Orquídea Negra”), de fantasia (“Sandman”) e dramas (“Violent Cases”, “Sinal e Ruído”).

Além disso, tenho dificuldade para achar que um gênero (como o de super-heróis) ou tema esteja saturado. Para mim, bons autores conseguem nos trazer boas histórias, não importa onde. Eu, por exemplo, não sou muito fã de comédias românticas, mas “Lore Olympus: Histórias do Olimpo”, da neozelandesa Rachel Smythe, é um dos meus quadrinhos favoritos na atualidade. Então, o que eu vejo aqui é: Neil Gaiman, história nova, projeto importante para ele...

Estamos preparados para a continuação da série que Neil Gaiman levou 3 décadas para voltar a escrever? Mesmo que seja um personagem “pequeno” vivendo temas “batidos” em um gênero “gasto”, eu estou sim. Com certeza.

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.