“Há espaço para todo mundo e que as mulheres também consomem quadrinhos, produzem quadrinhos e têm o direito de falarem sobre eles.”
A frase acima, infelizmente, não é de minha autoria – mas concordo com ela. A autora é a doutora Valéria Fernandes da Silva, professora de História que há 19 anos(!) escreve o blog Shoujo Café.
Eu leio com frequência o Shoujo Café, uma das minhas principais fontes sobre mangás em geral (e shoujo, mangás feitos por mulheres para meninas e mulheres, em particular). Por isso, quis realizar uma entrevista com a dra. Valéria Fernandes da Silva, e aproveitei para pedir dicas e mais dicas sobre quadrinhos.
Em primeiro lugar, parabéns pelo blog: dezenove anos! O que eu gostaria de saber, para começar é... Como a sra. começou a ler mangás? Que obras, personagens ou autores te interessavam?
Comecei a ler mangás nos anos 1990. Somente depois da chegada de Cavaleiros do Zodíaco nas nossas TVs (1994) é que os quadrinhos japoneses começaram a se tornar acessíveis ao grande público através de nossas editoras e a internet ajudou na difusão com grupos de fãs tradutores de obras que nunca apareceriam por aqui. No início, eu lia qualquer coisa que me chegasse às mãos, mas logo passei a preferir mangás shoujo, isto é, material voltado para o público feminino, especialmente, adolescente. Mesmo já no final dessa fase da vida, as obras conseguiam dialogar comigo, seja por abordar discussões de gênero ou problemas que, na medida do possível, não eram estranhas a de uma jovem mulher no Brasil. Lembro de ter lido “Shoujo Kakumei Utena” [publicado posteriormente no Brasil pela JBC como “Utena”] e “A Rosa de Versalhes” a primeira vez com o volume em japonês em uma mão e a tradução em inglês feita por fãs na outra. Não havia ainda traduções dessas obras em formato scanlation [quando fãs traduzem e disponibilizam obras estrangeiras].
A sra. começou direto por mangás ou passou por quadrinhos de outras origens antes?
Na mesma época que comecei a ler mangás, estava lendo alguns quadrinhos dos X-Men e Conan. Os comics eram comprados em sebo. Mesmo trabalhando desde o início da universidade, eu recebia muito pouco. Eu sempre gostei de desenhar, embora mal consiga rabiscar nessa altura da vida, então, os quadrinhos me ajudavam como referência. E eu gostava bastante do Príncipe Valente, tenho alguns álbuns em casa até hoje.
Como foi começar um blog sobre mangás? Aliás, um blog com um recorte específico para shoujo?
O blog começou na época das listas de discussão do Yahoo. Eu havia criado um grupo só para a discussão de shoujo chamado Tomodachi no shoujo. Havia muita desinformação sobre mangás femininos e em grupos maiores, ou fóruns, as fãs da demografia eram hostilizadas. Um dia, um colega sugeriu que eu abrisse um blog e colocasse lá as notícias. No início, era somente isso mesmo, tradução de notícias do inglês e do italiano, principalmente, sem imagens. Depois vieram as resenhas de mangás, séries e filmes, os artigos de opinião, enfim, tudo o que eu pudesse linkar com mangás para o público feminino, discussões feministas e de gênero e que me agradassem de alguma forma. O blog é de nicho, então, não tem a importância de portais ou de sites que falam daquilo que é considerado mais “universal”, mas ele resiste, aliás, a sua origem está exatamente na ideia de que há espaço para todo mundo e que as mulheres também consomem quadrinhos, produzem quadrinhos e têm o direito de falarem sobre eles.
Como a sra. definiria “shoujo” para quem não conhece o termo?
Seriam mangás feitos por mulheres para meninas e mulheres. São quadrinhos que tentam dialogar diretamente com o público feminino, mas que podem falar de qualquer tema, ou ser de qualquer gênero, além de serem interessantes para outros públicos. Você não precisa ser uma menina ou mulher japonesa para gostar de shoujo. A maioria dos shoujo são romances escolares, afinal, o público prioritário é adolescente e, no Japão, escola é coisa séria, lugar onde se passa muito tempo. Só que há revistas temáticas de horror/terror que são shoujo. Mas há shoujo para mulheres jovens e uma demografia, que a depender de quem analisa é shoujo ainda, chamada josei, que é para mulheres adultas. Nesse caso, há revistas para mulheres jovens, para as que tem profissão, para donas de casa, de terror, históricas etc. E há material erótico feito para mulheres, também, outra demografia mais recente chamada de TL (teen love), nas origens, as protagonistas eram adolescentes, com o tempo, a coisa mudou, são mulheres adultas, mas o nome ficou. Há dezenas de revistas para o público feminino, talvez mais de duas centenas, se contarmos, shoujo, josei, TB e BL [“boys love”].
Como a sra. seleciona os temas para seu site?
Há algumas seções do blog que são meio fixas como as resenhas e o ranking de mais vendidos da semana. É assim que a gente descobre o que está fazendo sucesso no Japão e o que pode vir para cá, ou virar anime, dorama. Quando alguma autora importante lança algum mangá, por exemplo, normalmente eu comento. Posso fazer um post quando uma série me parece interessante. Eu comento notícias relacionadas à cultura pop que possam se relacionar com o universo feminino, com questões feministas e de gênero, ou diversidade. Às vezes, comento notícias do universo político, como sou historiadora, há posts que falam da minha área e que não necessariamente estão ligados ao universo da cultura pop. Sempre depende do que me chama a atenção e do tempo que eu tenho. Ultimamente, tenho tido pouco tempo e energia. Antes de a minha filha nascer, publicava todos os dias, nem que fosse um post pequeno, hoje, às vezes fico dias sem publicar, ou perco o timing de alguma notícia importante.
Como a sra. reflete sobre mangás há pelo menos duas décadas, vou te pedir algumas dicas. A sra. teria 2 ou 3 sugestões para alguém que nunca leu mangás? E 2 ou 3 sugestões para quem nunca leu shoujo (ou para quem leu, mas sem saber que era shoujo)?
Quando comecei o blog, a gente dependia da internet para ler a maioria dos mangás, porque eram os fãs que traduziam o que havia de mais novo e o que não parecia ser comercialmente interessante. No Brasil, quadrinho era visto como coisa de criança, ou de homem que nunca cresceu. Não havia (e não há até hoje na cabeça de alguns) a imagem da mulher leitora de quadrinhos ou que faz quadrinhos. A disseminação dos mangás ajudou bastante a mudar essa percepção de quem é público e quem é produtor de quadrinhos, mas ainda temos barreiras a romper.
Sugestões para quem nunca leu mangá, é algo que depende de quem é a pessoa. Ela assiste anime? É criança? Adolescente? Homem? Mulher? A coisa maravilhosa dos mangás é que há muita diversidade. Vou ficar somente com coisas que saíram aqui, que ainda estão, ou podem estar, disponíveis.
Para o público infanto-juvenil, talvez eu apostasse em um shounen – “Demon Slayer”, “Naruto”, “One Piece”. A pessoa poderia assistir ao anime e ler o mangá, aliás, esse elo é importante. Está para estrear uma nova versão animada de “Ranma ½” é uma série que pode agradar qualquer público, claro, conforme ela se estica, a gente pode perder o interesse. “Monster” poderia ser uma sugestão para alguém mais velho. Se a pessoa gosta de arranjos familiares alternativos, “O Marido do Meu Irmão” é um material muito acessível. “Não Chame de Mistério” pode interessar a quem gosta de histórias de detetives. Se a pessoa que ter contato com clássicos, há “Ashita no Joe” e “A Rosa de Versalhes”, ambos são belos exemplares do que se fazia no início dos anos 1970. “Ashita no Joe” é mangá de esportes, “A Rosa” é um mangá histórico. Para quem gosta de esportes e quer um mangá moderno, “Haikyu!!” poderia ser uma boa pedida.
Vou juntar shoujo e josei em um mesmo pacote... Já citei dois, “A Rosa de Versalhes” (histórico, dramático) e “Não Chame de Mistério” (detetive/josei). Eu recomendaria “Orange”, que começou em revista shoujo e passou para uma revista seinen, é uma série de ficção científica e que também é romance escolar e fala de amizade. Para quem quer uma comédia escolar com romance, “Colégio Ouran Host Club” é uma boa pedida. E recomendaria “Honey & Clover” (josei) e “Sunadokei” (shoujo), duas das obras mais sensíveis e bem construídas que já foram lançadas por aqui.
Dentro de todo o tempo que a sra. pesquisa e reflete sobre shoujo, que obras a sra. destacaria como históricas, que ajudaram a definir ou revolucionar os shoujos? (Não todas, claro, que imagino que são muitas... Mas se puder citar algumas, seria bacana!)
Acredito que a geração de autoras que dominou a produção nos anos 1970, ajudou a definir o que a gente vê como shoujo. Mesmo que o mangá de esportes, o romance escolar, já existissem nos anos 1960, foram essas autoras do Grupo de 1948 (porque a maioria era nascida neste ano, o ano 24 da Era Showa), Riyoko Ikeda, Hagio Moto, Takemiya Keiko etc., que elevaram o sarrafo dos mangás da época. Inovaram em temáticas, algumas muito ousadas para a época e para revistas que, a rigor, tinha um recorte infanto-juvenil, na representação artística dos sentimentos, mesmo mangá-kas que não eram do grupo, tiveram que se esmerar produzindo o mais do mesmo, mas com uma qualidade superior. Entao, dos anos 1970, temos “A Rosa de Versalhes”, “O Coração de Thomas”, “Kaze to Ki no Uta”, “Eroica”, “Arabesque”.
Fora do grupo, veio “Sukeban Deka”, o primeiro shoujo policial; “Swan”, que elevou os mangás de balé, que vinham lá dos anos 1950, a uma beleza plástica nunca vista antes. Hagio Moto, em especial, além de fazer mangá histórico, colocar os romances entre garotos dentro dos shoujo mangá (junto com Takemiya Keiko), ainda deu destaque à ficção científica: “They Were Eleven!” (Juuichinin Iru!). Os mangás de ficção científica shoujo dos anos 1980, e há vários, dependeram desse empurrão, e eu cito “Please Save My Earth” (Boku no Chikyū o Mamotte). “Sailor Moon” vai revolucionar o gênero garota mágica ao trazer elementos do super sentai (a ideia de equipe), abrindo caminho para tudo o que vem depois.
Ainda assim, e só para que eu não me estique muito mais, a gente não pode esquecer que mangá é indústria de massa e que o que marca a demografia não é o que é inovador. Se a gente mergulha nesse mundo de produções japonesas em busca de coisas muito inovadoras, disruptivas, vai se frustrar, porque a maioria da produção de qualquer demografia é para consumo rápido e segue padrões que precisam ser reconhecidos pelo seu público-alvo. Por isso mesmo, o shoujo é principalmente romance escolar. E isso não é ruim, é o que dialoga melhor com seu público-alvo nipônico, isto é, meninas adolescente. Por isso mesmo, uma autora como Io Sakisaka é tão bem sucedida. Ela domina como ninguém a fórmula do romance escolar.
A sra. poderia citar três autores que são inéditos no Brasil e que a sra. gostaria que fossem publicados por aqui? Ou três obras específicas?
São muitas omissões. Eu começaria por Fumi Yoshinaga. Ela tem mangás curtos, shoujo, josei, BL, nada dela saiu por aqui. Com a animação da Netflix, eu acredito que, fianlmente, “Ōoku” apareça no Brasil, mas poderia ser outra obra dela, “Flower of Life”, por exemplo, ou “All My Darling Daughters,” mas, a julgar pelo nosso mercado, periga lançarem um dos seinen que ela fez.
Outra omissão é Fuyumi Souryou, “Mars” teve nova edição recente no Japão e é uma série que já deveria ter aparecido por aqui faz tempo.
Hagio Moto, para falar de autoras clássicas e mais que consagradas, deveria já ter sido lançada aqui faz tempo - faz mais de 15 anos que “They Were Eleven!” seria a minha escolha. Volume único, shoujo mais que premiado e de ficção científica, o que poderia atrair gente que torceria o nariz para materiais que “para mulheres”.
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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